As mulheres vítimas de violência doméstica continuada e severa desenvolvem um mecanismo de sobrevivência para não serem maltratadas que aumenta o risco de desenvolverem doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão e cancro, revela um estudo divulgado hoje.
Segundo o estudo, o ‘stress’ prolongado e sem controlo leva ao aparecimento de doenças que podem conduzir à morte.
Financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e tendo como investigadora principal Inês Jongenelen, da Universidade Lusófona, o estudo foi realizado por investigadores das universidades Lusófona do Porto, da Universidade do Porto, e da Universidade de Michigan, Estados Unidos, e envolveu 160 mães e 160 crianças portuguesas sinalizadas por violência doméstica, 80 das quais a viver com o agressor e as restantes em casas abrigo.
A investigação – publicada nas revistas científicas Psychoneuroendocrinology, Journal of Interpersonal Violence, Child Abuse & Neglect e Journal of Child and Family Studies – visou perceber as diferenças das mulheres e das crianças nestes dois contextos distintos e entender do ponto de vista fisiológico, psicológico e social qual é o impacto de continuar a viver com o agressor e o que significa estar numa casa abrigo.
Nas mulheres, os investigadores analisaram os níveis de cortisol, hormona associada ao ‘stress’ que tem efeitos positivos na regulação da resposta imunitária e no metabolismo, que normalmente aumenta após o acordar.
Quando isso não acontece é “um indicador de que o sistema de stress não está a funcionar corretamente”, disse à agência Lusa o investigador Ricardo Pinto, da Universidade Lusófona do Porto, adiantando que apenas 40% das mulheres avaliadas tinham uma libertação normal de cortisol.
A desregulação da libertação de cortisol está correlacionada com situações de violência severas e frequentes e observa-se nas mulheres que vivem com o agressor, disse o investigador.
Este dado é explicado no estudo como fazendo parte de um mecanismo de sobrevivência em que as mulheres mais maltratadas recorrem a comportamentos, como a inação, apatia ou evitamento, similares ao comportamento de fuga ou luta quando se está perante uma ameaça.
Se por um lado estes comportamentos são adaptativos na medida em que a mulher “finge-se de morta” para não ser maltratada, por outro lado, esta “desregulação persistente no tempo é um fator de risco para o aparecimento de doenças, nomeadamente diabetes, infeções crónicas, e doenças mais mortais, como as doenças cardiovasculares e o cancro”, disse Ricardo Pinto.
“Na prática, a mulher vítima de violência doméstica só está a adiar o inevitável, uma vez que se não morrer pelas mãos do agressor, morre a longo prazo pelo desenvolvimento de doenças mortais, tal como se tem vindo a provar em vários estudos empíricos”, frisou.
Ricardo Pinto defendeu que estes resultados devem alertar a comunidade para que se olhe para a violência doméstica também como “um fator de risco de morte a longo prazo” e não apenas pelo número de mortes e pelas mazelas físicas que deixam nas mulheres.
O estudo verificou ainda que, ao contrário das mulheres que viviam em casa-abrigo, que estavam mais ajustadas em termos psicológicos, fisiológicos e sociais do que as que viviam com o agressor, as crianças revelaram mais problemas emocionais e comportamentais, o que poderá em parte ser explicado pelas mudanças de contexto de vida destas crianças.
Inês Jongenelen ressalvou que estes dados relativos às crianças, com idades entre os quatro e os 10 anos, têm de ser “olhados com muita cautela” porque foram recolhidos num “único momento” e baseados nos relatos das mães. A transição para a casa abrigo pode ser vivida pela criança como um fator de ‘stress’ a curto prazo e não ser necessariamente um preditor a longo prazo do ajustamento psicológico da criança, explicou a investigadora.
Apesar de permanecer junto da mãe, a criança ao entrar na casa-abrigo deixou a sua casa, perdeu a ligação à escola, aos amigos e à família alargada. Contudo, este impacto mais negativo pode dissipar-se com a adaptação à casa e ao facto de a mãe estar melhor, mas só com um estudo longitudinal se poderá avaliar o que aconteceu.
“Por outro lado, muitas destas crianças poderiam já ter problemas mais acentuados antes da entrada na casa abrigo”, o que contribuirá para explicar os resultados obtidos, observou a diretora da Faculdade de Psicologia da Lusófona do Porto e da Escola de Psicologia e Ciências da Vida da Universidade Lusófona de Lisboa.
Para Inês Jongenelen, estes resultados reforçam a importância das instituições prestarem serviços e cuidados centrados na família e nas necessidades da criança.