Opinião
Uma família em mudanças
Ninguém gosta de mudanças. Retirar as louças dos armários, encaixotar os livros, envolver os móveis com aquele plástico que os protege da violência do transporte e instalação na nova morada. É uma trabalheira…
Ainda assim, mesmo ciente da exigência da promessa, Luís Montenegro assegurou que, se ganhasse as eleições, iria levar a cabo mudanças. E prometeu que não seriam pequenas mudanças. Nem mesmo moderadas mudanças. Segundo ele, sob a liderança da AD, Portugal iria assistir às mudanças estruturais que o país reclama desde 1143.
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Vitorioso, o líder do PSD resolveu começar com pezinhos de lã. Ao invés de apresentar o pré-anunciado plano de emergência para a saúde ou de revelar o corpo da reforma judicial que matará — finalmente — a expressão “são os tempos da justiça”, Luís Montenegro arrancou com uma medida simbólica: “repor símbolos essenciais da identidade e da história” através da mudança do logótipo da administração central.
A medida foi simbólica, mas a reação foi pungente, gerando uma espuma semanal muito particular em que a geometria e o design conheceram um protagonismo inusitado.
Dias depois, foi Pedro Passos Coelho, a pretexto da apresentação de um livro sobre identidade e família, a roubar o protagonismo aos designers. Acolhido na manjedoura da direita mais conservadora, o ex-primeiro ministro reapareceu publicamente para declarar que a família é o pilar central da nossa comunidade.
O conservadorismo das reflexões publicadas no livro foi exaltado por Pedro Passos Coelho que, ao lado de André Ventura, deu mostras de, também ele, querer mudanças; no caso, na política de alianças entre PSD e CHEGA.
A notícia abriu telejornais e despertou a ira dos seus detratores. Rapidamente, Daniel Oliveira, na SIC Notícias, veio denunciar a
“ofensiva ultraconservadora” que ataca a ideologia de género e Pedro Nuno Santos, na TVI, veio assumir-se assustado com a “adoção das bandeiras da extrema-direita” por parte da direita tradicional. Assim como acontece com a expressão “política de imigração”, a ideia de “defesa da família” foi suficiente para ressuscitar os espíritos esquerdistas que, prontamente, saltaram do sofá para apontar a aproximação do ex-líder do PSD ao conservadorismo bafiento e saudosista representado por Ventura.
A mim — que continuo a acreditar que “o não é não” —, o conservadorismo não me suscita tanto choque. Entendo-o como uma espécie de travão que modera a aceleração progressista, numa rotação binária em que ambos são indispensáveis ao funcionamento do motor. Ou, neste caso, da sociedade.
Contudo, mesmo tendo simpatia por algumas destas tendências conservadoras — nunca consegui apreciar os radicalismos que clamam por 100 géneros ou exigem cancelamentos à J. K. Rowling —, confesso algum cansaço com este clima de guerra cultural. Bem sei que estes conflitos são naturais e, até certo ponto, desejáveis, mas julgo que há meia dúzia de questões a priorizar no debate público e na decisão política.
Há semanas, na última vez que olhei para o meu país, isto não estava famoso. Tínhamos uma justiça que demora 10 anos a acusar um PM corrupto; um SNS falho que, segundo o seu diretor executivo, conheceu, no passado mês de novembro, o seu pior mês de sempre nas urgências; uma polícia mal paga e desqualificada que está cada vez mais refém dos sindicatos inorgânicos; uma força militar que não responde à realidade conjuntural de uma Europa em estado de pré-guerra; uma crise na habitação, inalcançável até para quem trabalha; um ensino cada vez mais decrépito e burocrático que atravessa uma gigantesca assimetria demográfica; ou um aeroporto cuja localização está a ser estudada há mais de meio século.
Eu sei que só vamos nas primeiras semanas; também sei que o Governo tem uma margem de manobra diminuída; e até sei que os símbolos e a identidade histórica devem ser preservados por quem (circunstancialmente) se encontra no poder. Ainda assim, não acompanho a vertigem identitária de alguma direita que, perto do poder, prefere ressuscitar as guerras culturais a focar-se nas mudanças estruturais.
Concedo, porém, que é muito cedo para fazer exigências à nova governação. E, aí, talvez o problema seja meu. Talvez esta ânsia por mudanças me esteja a retirar a paciência e o vigor que me fariam empenhar esforços em disputas de costumes. Talvez eu devesse carregar as armas e insurgir-me, em marcha, contra os canhões da “sovietização do ensino”.
O mesmo ensino que tem professores a dormir em carros. O mesmo ensino que, a três meses dos exames nacionais, ainda tinha 30 mil alunos sem professores. O mesmo ensino que exalta os meus camaradas mais otimistas: “Não há professores? Olha, ainda bem. É da maneira que não põem a ideologia de género na cabeça dos miúdos!”. O problema é que também não põem a matemática e o português e esses fazem mesmo falta à tola da criançada.
OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA
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