Opinião

Um palhaço que não faz rir

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | 10 meses atrás em 18-02-2024

No fim de semana passado fomos ao circo, eu e a mais nova. Admito que não sou o maior entusiasta das artes circenses, mas já tenho experiência suficiente de parentalidade para saber que, muitas vezes, temos de nos resignar a votar vencidos.

Apesar das minhas expetativas, foi um bocado bem passado, com um espetáculo em relação ao qual o maior elogio que posso fazer é que se percebia que o amor ao ofício dos participantes era sincero (e eu prezo imenso a sinceridade nos artistas, mesmo sabendo que ela nunca existe). Mas o número que me ficou na cabeça, em que ainda agora não consegui deixar de pensar, não tinha absolutamente nada de mágico.

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Constava do seguinte: um palhaço chamava vários elementos do público, homens e mulheres, para cima do palco, onde lhes dava instruções para o que seria a gravação da cena de um filme. Peço-vos que imaginem as figuras cómicas que cada um deles fazia, motivadas pelo inesperado ou a falta de jeito para a representação, e apresento-vos um resumo do desenlace: uma das mulheres traía o marido (ou namorado) e acabavam ambos mortos com um tiro na cabeça. Lembro-me de, meio anestesiado por aquilo a que estava a assistir, ficar imóvel a tentar perceber se me constrangia mais o facto de haver quem achasse que aquilo podia ser considerado um sketch humorístico, se a dose adicional de despropósito por estar a ser apresentado perante uma plateia cheia de crianças, se o ambiente à minha volta ser de risos generalizados.

Felizmente, a minha filha estava já mais fascinada com a ‘espada laser’ que comprámos durante o espetáculo e aquele era o número final, pelo que saímos dali logo de seguida, ela a imaginar ser a Mulher Laser e eu a imaginar que nada daquilo havia acontecido…

Pouco depois, enquanto lanchávamos, olhei para um dos televisores da pastelaria e li o rodapé do bloco noticioso então no ar: Homem assassina mulher a tiro. Não há coincidências, não é? Uma ideia que se reforça por outros títulos dos dias seguintes, como “Mulher morta à facada por ex-companheiro nas ruas de Lisboa” e “Homem tenta matar mulher com martelo”. Ou ainda pelos dados, entretanto revelados, de um estudo realizado pela UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, que indica que existe uma normalização da violência no namoro entre os jovens.

Normalização é mesmo a palavra-chave. Rir inconsequentemente da violência ajuda a torná-la natural, passar esse tipo de atitude para os mais novos ajuda a eternizá-la. De uma forma mais geral, apresentar ou relativizar representações irresponsáveis de violência pode ser tão prejudicial para a vida em sociedade quanto a violência em si, contribuindo para a construção de uma cultura que minimiza, ou até mesmo justifica, comportamentos que não podem ser desculpados. É, por isso, crucial desafiar visões antiquadas – sobre as relações e até mesmo sobre o papel da mulher – e reforçar a importância do respeito, da igualdade e da empatia.

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E não esquecer que a complacência também é, à sua maneira, um crime.

OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO

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