Crimes
Tragédia familiar: Quando uma herança faz um médico formado em Coimbra matar familiares
Talvez um dos homicídios portugueses que mais polémicas levantou. Falamos de um dos primeiros assassinatos mediáticos em Portugal. Falamos do caso do crime da Rua das Flores, onde o médico Vicente Urbino Freitas é acusado de matar quatro familiares da sua esposa.
Remontemos ao final do século 19. Há fragilidades no sistema médico-legal e é importante testar análises toxicológicas.
Vicente Urbino de Freitas foi um médico, natural do Porto, formado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em 1875, e tornou-se professor na Escola Médico-cirúrgica do Porto.
Dois anos depois, casou com Maria das Dores, filha de um rico comerciante de linhos. Após a cerimónia, a desgraça abateu-se com um conjunto de mortes de familiares de Maria das Dores em circunstâncias suspeitas, nomeadamente as dos irmãos Guilherme e José, inclusive, um deles consultado por Urbino de Freitas, apresentava sintomas típicos de ingestão de veneno.
Alguns meses depois, os três sobrinhos de Maria, filhos dos seus irmãos falecidos que passaram a viver com os avós, receberam uma encomenda suspeita de bolos e amêndoas que revelavam um sabor esquisito. Estas foram atendidas pelo tio Urbino que lhes receitou eméticos e clisteres com a recomendação que fizessem uma retenção tão longa quanto possível.
Apenas Mário, o rapaz e o mais velho, seguiu a prescrição do tio, mas viria a falecer com sintomas semelhantes aos do seu tio José. As suspeitas de envenenamento recaíram em Urbino de Freitas, acusado de querer ficar o único herdeiro da fortuna do sogro.
Relativamente ao caso de Urbino de Freitas, a comissão médico-legal, constituída por quatro peritos , realizou as autópsias de José e do seu sobrinho Mário, tendo as vísceras sido submetidas a testes toxicológicos no Laboratório Municipal do Porto.
Segundo o relatório redigido pela comissão e apresentado em 1890, não foram detetados alcalóides nas vísceras da vítima, situação atribuída ao adiantado estado de putrefação mas, nas vísceras do pequeno Mário, foi detetada a presença de morfina, de narceína.
O relatório afirmava que as reações químicas a que as submeteram dão-lhes indício da existência, nas mesmas vísceras, duma base orgânica que, pelos carateres químicos, se aproxima da delfina. Os testes foram repetidos nas vísceras retiradas numa segunda autópsia de Mário, com resultados idênticos.
Contudo, os testes efetuados às amêndoas não revelaram a existência de qualquer substância tóxica.
A polémica recrudesceu quando a defesa de Urbino de Freitas recrutou um médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Augusto António Rocha, fundador e redator da revista Coimbra Médica que tinha sido colega de Urbino.
Aceitou cooperar com duas condições: serem consultados toxicologistas estrangeiros e contar com a colaboração de Joaquim dos Santos e Silva, então à frente dos trabalhos práticos do Laboratório Chimico da Universidade de Coimbra.
Santos e Silva, um farmacêutico muito conceituado, contribuiu com muitos artigos sobre a química analítica, nomeadamente no âmbito da hidrologia e da toxicologia. Entre 1878 e 1899 teve a seu cargo as análises químico-legais requeridas pelo Tribunal da Comarca de Coimbra.
Numa série de artigos publicados na Coimbra Médica estes dois professores da UC criticaram o relatório médico-legal desencadeando uma guerra que viria a ser ganha pelos portuenses, pelo menos sob o ponto de vista legal, em virtude do acórdão de 1 de dezembro de 1893 do Tribunal Criminal do Porto, que condenou Urbino Freitas a oito anos de prisão e ao degredo pelo homicídio do seu sobrinho Mário.
O réu, demitido das suas funções e proibido de exercer medicina, acabou por ser deportado para o Brasil após ter cumprido a pena de prisão na Penitenciária de Lisboa.
Neste país, por duas vezes Urbino de Freitas pediu permissão para exercer medicina, tendo os pedidos sido rejeitados.
Urbino de Freitas regressou a Portugal e até ao fim da sua vida alimentou uma batalha jurídica, procurando novos elementos de prova que o ilibassem ou a obter um despacho judicial favorável.
Contou sempre com o apoio e a fé inquebrantável da esposa, Maria da Dores Freitas.
Urbino de Freita morreu em outubro de 1913.
O caso relatado originou ao livro O Caso Medico-Legal Urbino de Freitas , da autoria dos peritos forenses portuenses, que teve não só repercussão nacional mas também no estrangeiro alargando a visibilidade da toxicologia.
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