Coimbra
Teatrão apresenta A Grande Emissão do Mundo Português. Uma reflexão sobre a propaganda do Estado Novo na era das Fake News
O Teatrão estreia, na sexta-feira, “A Grande Emissão do Mundo Português”, em que a sede da companhia de Coimbra se transforma num estúdio da Emissora Nacional, para refletir sobre o país imaginário criado pelo Estado Novo.
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Num tempo em que se debatem as “notícias falsas”, O Teatrão aborda o papel da Emissora Nacional na criação de um certo país ficcionado pelo Estado Novo, num espetáculo onde se acompanham 21 anos do regime liderado por Salazar, entre os anos 40 e 60, à boleia de um programa de rádio.
Com duas décadas condensadas em hora e meia, o público assiste a um alinhamento, produzido por um grupo de cinco trabalhadores da Emissora Nacional, que vai da música ao noticiário, passando pela publicidade.
Pela “Grande Emissão do Mundo Português”, ouvem-se várias canções que dialogam com a dramaturgia, seja a “Marcha do Trabalho”, o fado “Que Deus me Perdoe”, de Tomé de Barros Queiroz, ou a música ligeira “Cantando Tudo”, de Maria da Graça.
À medida que os anos passam por aquele programa, vai surgindo, de forma gradual e subtil, “uma fissura entre aquilo que o Estado Novo queria para o país e aquilo em que o país se estava a tornar”, disse à agência Lusa o dramaturgo da peça, Jorge Palinhos.
O desconforto dos trabalhadores da emissora aparece em vários momentos, confrontados entre o país real e o país ficcionado, seja em conselhos de etiqueta para ouvintes que falam de implantes mamários ou pornografia, ou num programa de civilidade e asseio, em que uma galinha, a partir de cacarejos, põe em causa a sobriedade dos locutores.
Depois de abordar a personagem central do Estado Novo, em “Eu, Salazar” (estreada a 25 de Abril), a companhia de Coimbra quis agora refletir sobre a sofisticação da propaganda do regime, que cria uma espécie de “imaginário do país”, contou à Lusa a diretora d’O Teatrão, Isabel Craveiro.
Abordar o papel da Emissora Nacional no Estado Novo num momento em que se debatem as “notícias falsas” “não é coincidência”, frisa.
“É propositado que seja feito neste momento. No teatro, estamos sempre a tentar entender o estado atual das coisas, fazendo ficções ou pegando naquelas que já existem, mas relendo-as na contemporaneidade”, explica.
Segundo Isabel Craveiro, optou-se por trabalhar o papel específico da rádio, devido a outro projeto que a companhia realiza com idosos em instituições particulares de solidariedade social de Coimbra, em que notou que a “realidade fabricada pela propagada” continua, “de uma forma fortíssima, no imaginário das pessoas”.
Esse imaginário, sustenta, “nada tinha a ver” com aquelas pessoas, a sua maioria trabalhadores rurais ou operários em fábricas da região.
No entanto, “projetava uma ideia de um sítio onde se queria chegar, um sítio de harmonia, de paz, até de amor”, que não coincidia “com a vida daquelas pessoas, que tiveram vidas terríveis, de grande sacrifício, de grande luta”, frisa.
“Isso foi muito forte para mim e queria perceber como é que esse processo foi tão eficaz, como é que a rádio contribuiu para esta construção tão eficaz de uma identidade, de um país”, refere.
Para o dramaturgo Jorge Palinhos, procurou-se, acima de tudo, “encontrar esta ideia da rádio ao vivo e de tentar perceber este encantamento”.
“O que é esta rádio encantatória, que conseguiu inventar um país, um país à imagem do próprio António Ferro [diretor do Secretariado de Propaganda Nacional do Estado Novo]? E o que encontrámos é que o país que hoje se vende é o país que, em larga medida, foi inventando por António Ferro: o galo de Barcelos, o fado, [a ideia de] ruralidade, a Nazaré. Tudo isso parece uma espécie de invenção ficcional que se mantém ainda hoje”, frisou o dramaturgo.
O espetáculo estreia-se na sexta-feira e tem apresentações na Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra, até 20 de janeiro, de quarta-feira a sábado, às 21:30, e aos domingos, às 18:00.
“A Grande Emissão do Mundo Português” é interpretada por Ana Bárbara Queirós, Celso Pedro, Isabel Craveiro, João Santos e Margarida Sousa.
A direção musical é de Luís Figueiredo, desenho de luz de Jonathan Azevedo e cenografia e figurinos de Filipa Malva.
O espetáculo contou ainda com a consultoria científica de Manuel Deniz Silva e Pedro Moreira Russo, investigadores do Centro de Estudos em Música e Dança, da Universidade Nova de Lisboa.
O preço dos bilhetes é de quatro a dez euros.
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