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Sem-abrigo encontrou “cantinho do céu” na Habitação Solidária
josé (nome fictício), de 59 anos, encontrou no projeto ‘Habitação Solidária’ – para pessoas em situação de sem-abrigo – “um cantinho do céu”, mas já só pensa num novo lar, no qual possa viver sozinho e de forma independente.
Em 2021, chegou à Madeira, proveniente do Panamá, onde esteve emigrado 35 anos. Perdeu o trabalho que tinha devido à pandemia da covid-19 e foi forçado a regressar à ilha onde nasceu.
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Embora no Panamá já tenha vivido na rua, “há muitos anos”, na Madeira nunca chegou a esse ponto, conta à agência Lusa.
José foi encaminhado para a Associação Protetora dos Pobres (APP) e esteve durante um ano no centro de acolhimento noturno para pessoas em situação de sem-abrigo, no Funchal, o único na região.
Atualmente está a integrar o projeto ‘Habitação Solidária’, que resulta de um protocolo de cooperação assinado entre a Câmara do Funchal, o Instituto da Segurança Social da Madeira e a Associação Protetora dos Pobres, em julho do ano passado.
Trata-se de uma casa de transição que pretende dar aos habitantes as competências e os recursos necessários para que possam, no futuro, alcançar uma vida independente.
É uma das quatro pessoas em situação de sem-abrigo escolhidas para integrar a iniciativa. Na nova casa, onde estão desde dezembro do ano passado, os habitantes têm regras a cumprir e são os responsáveis por assegurar todas as tarefas domésticas.
“Isto para mim foi um cantinho do céu. Lá em baixo [no centro de acolhimento] entrava todo o mundo, drogados, bêbados e ficávamos três no mesmo quarto. Aquilo para mim era uma desgraça, não estava habituado aquilo”, desabafa José.
A ‘Habitação Solidária’, situada no Funchal, é composta por dois quartos, cada um com duas camas, uma casa de banho, cozinha e sala de estar.
A casa é municipal, tendo sido requalificada e mobilada com móveis restaurados no âmbito do projeto social ‘Oficina Solidária’, que recupera mobiliário usado ou em mau estado.
Os habitantes podem ainda usufruir de um quintal, que é também composto por uma pequena horta que José reconhece não estar nas melhores condições, uma vez que é o único habitante da casa disponível para assegurar essa tarefa.
Ainda assim, quando tem tempo, planta hortaliças que depois doa à Associação Protetora dos Pobres.
Além de garantir habitação, o projeto garante igualmente emprego. Um deles trabalha numa empresa privada, dois estão a frequentar um programa de formação (remunerado) da autarquia e José ingressou recentemente nos quadros do município como cantoneiro.
“Aqui temos regras de limpeza a cumprir. Esta semana calhou-me limpar a cozinha, outro era a sala e o corredor, outro o espaço exterior e outro a casa de banho. É rotativo”, explica.
“Cada qual tem de fazer o seu trabalho e, se não faz, vêm aqui estes dois polícias e puxam as orelhas a todo o mundo”, diz, entre risos, apontando para a equipa técnica responsável pelo projeto, composta por dois psicólogos da APP.
Apesar de reconhecer que está agora melhor do que no centro de acolhimento noturno, José não esconde a sua inquietação para conquistar o próximo passo.
“Desde o primeiro dia que eu cheguei aqui que eu disse que já tinha a cabeça noutro lugar. Porque eu quero um espaço próprio, não estou acostumado a viver com ninguém. No Panamá vivi quase toda a minha vida sozinho e faz-me uma confusão ir à casa de banho e estar alguém, ir à cozinha e estar alguém”, afirma.
José está inscrito na empresa municipal de habitação do Funchal (Sociohabita) e tem também procurado casa no mercado privado de arrendamento, mas o que tem encontrado na internet “é muito caro”.
Quanto à convivência entre os quatro, diz que, embora já tenha havido “complicações”, o ambiente agora está melhor.
Filipe Xavier e Sandra França são os dois psicólogos responsáveis pelos quatro moradores da ‘Habitação Solidária’. Vão à casa “de um forma bastante regular”, apesar de não terem uma periodicidade definida.
“O nosso principal papel, resumidamente, é coordenar as atividades diárias, perceber como é que as coisas estão a correr entre os residentes, os objetivos que nós temos estipulados para os mesmos e os prazos a cumprir de acordo com os objetivos deste projeto”, descreve Filipe Xavier, em declarações à Lusa.
Os principais objetivos, acrescenta, são que as pessoas estejam estabelecidas a nível profissional e, “numa vertente mais pessoal”, estejam “motivadas para arranjarem um sítio próprio para viverem”.
Os dois psicólogos também marcam reuniões com os residentes da ‘Habitação Solidária’, individuais ou em grupo, muitas das quais motivadas por questões que ocorrem na casa.
“Outras são porque temos uma linha de intervenção com cada utente. Cada residente tem o seu próprio tempo, tem a sua própria forma de pensar, de estar na vida, e isso obriga-nos obviamente a definir uma estratégia para cada pessoa”, explica.
Filipe Xavier realça também o papel de “gestão de expectativas” e de direcioná-los para os objetivos, num processo repleto de “altos e baixos”.
Antes de integrarem a casa, os quatro habitantes passaram por um processo de capacitação e treino de competências.
O psicólogo sublinha que é necessário “perceber quem está preparado” para dar este passo, argumentando que a mudança pode ser “um bocadinho agressiva”.
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