Portugal

Projeto com pesquisadores de Coimbra investiga práticas “primitivas” que podem ajudar no combate aos fogos

Notícias de Coimbra com Lusa | 2 horas atrás em 24-04-2025

 O projeto ‘Fireuses’ – Paisagens de Fogo, que investigou a história dos incêndios rurais, debatido hoje em Lisboa, concluiu que as práticas de fogo foram abandonadas por serem consideradas “primitivas”, mas algumas podem ajudar no combate aos fogos florestais.

“Numa irónica volta do destino, a recuperação das ‘perniciosas tradições’ do fogo, como o fogo controlado e o contrafogo, são agora apresentadas pelos especialistas como uma saída para este enigma ardente”, referiu Ana Isabel Queiroz, investigadora do Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa, citada numa nota sobre o projeto.

Os principais resultados foram apresentados na conferência internacional “Paisagens de Fogo: Uma história política e ambiental dos grandes incêndios em Portugal”, na Biblioteca Nacional, em Lisboa, com investigadores da equipa ‘Fireuses’ e convidados da Galiza, Tunísia, Brasil e Reino Unido.

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Os investigadores das universidades Nova de Lisboa, de Coimbra e do Porto e do laboratório associado IN2PAST avaliaram, durante cerca de três anos, a origem e desenvolvimento dos grandes incêndios ao longo do século XX, analisando o discurso político e científico e a transição rural entre as agriculturas do fogo e o incêndio florestal no período 1950-1980.

Estas duas paisagens de fogo, distintas, foram analisadas em dois espaços de montanha, o planalto serrano entre a Lapa e Nave, no distrito de Viseu, e a serra de Monchique, a sul.

O projeto concluiu, em termos gerais, que a “exclusão das práticas de fogo foi apoiada por um consenso científico crescente que condenava os cultivos de cereais através do fogo como ‘primitivos’ e fonte de desequilíbrio ambiental”, pois passou a ser visto como “inimigo” da floresta.

No entanto, a equipa constatou que as tentativas de restrição do fogo falharam e “os incêndios rurais se tornaram, a partir dos anos 1960, cada vez mais comuns e destrutivos, devastando um território a cada ano mais inflamável”.

O estudo na Lapa e Nave, nos concelhos de Moimenta da Beira e Sernancelhe, bem como a pesquisa a sul na serra de Monchique, distrito de Faro, mostrou que “durante grande parte do século XX não ocorriam incêndios de grande dimensão”, e as calamidades associadas ao fogo eram “acidentais em eiras, que podiam destruir inteiramente a colheita de cereais do ano”.

Na região do centro, a florestação com pinheiro bravo dos baldios foi iniciada na viragem para a década de 1960 e os primeiros grandes incêndios ocorrem na década seguinte, “já depois do 25 de Abril, quando os pinhais plantados haviam sido devolvidos às comunidades locais e estavam prontos para o primeiro corte”.

Em Monchique, a paisagem rural organizada em torno de práticas extensivas de fogo transitou para “uma paisagem florestal e industrial percorrida regularmente por grandes incêndios”, com a passagem, na década de 1960, “de uma economia rural baseada nos cereais para uma economia centrada no eucalipto”.

O êxodo rural em grande escala no início de 1960 reduziu gradualmente “o cultivo de cereais e, por conseguinte, o uso do fogo”, mudanças que “criaram uma paisagem a cada ano mais inflamável devido ao crescimento da vegetação natural sobre as roças abandonadas e à expansão dos povoamentos florestais”.

“A exclusão das práticas de fogo em Monchique é o resultado combinado da transformação agrícola e de um novo modelo de prevenção de incêndios florestais preocupado em proteger as novas florestas de eucalipto”, apontou a equipa do ‘Fireuses’.

A investigação, a partir de mais de 60 entrevistas, permitiu conhecer as práticas agrícolas e vivência rural nas quatro décadas, e descobrir, “com alguma surpresa, um amplo repertório de tecnologias de fogo, tanto na serra de Monchique como nas serras da Lapa e Nave”, em pleno vigor em 1950 e 1960.

“Não eram relíquias de práticas ancestrais, mas sistemas agrícolas organizados em torno do fogo e que incluíam, ademais, técnicas novas e inovações várias desenvolvidas durante a primeira metade do século XX”, notaram os investigadores.

Os incêndios rurais, na monarquia constitucional e primeira República, são um tema “muito pouco discutido no parlamento”, comparando com os incêndios urbanos, mas a situação muda no Estado Novo (1933) e com o Plano de Povoamento Florestal (1938), quando “o uso do fogo passa a ser encarado como ameaça às novas florestas que deveriam estar na base da regeneração económica do país”.

Numa primeira fase, até ao final de 1950, surgem referências às queimadas bem como ao “incendiarismo” que ameaça os planos de florestação, mas a mudança drástica ocorre no início da década de 1960, passando-se a debater no parlamento o “inferno dos incêndios” já como “emergência nacional e não como ameaça específica às florestas plantadas pelo Estado”.

O aumento das restrições aos usos do fogo no espaço rural está, assim, ligado “à emergência dos projetos de florestação dos baldios no final do século XIX, no quadro do liberalismo político, e da sua expansão posterior durante o Estado Novo”.

“Neste contexto, as práticas de fogo associadas aos sistemas agrícolas de montanha passaram a ser vistas como arcaísmos prejudiciais ao solo, ao clima e, em particular, aos cobertos arbóreos”, resume-se.

Mas, a “apreciação do fogo controlado no discurso técnico-científico surge na década de 1970 a par do aparecimento de grandes incêndios em vários espaços montanhosos, da revalorização de saberes agrícolas e ecológicos inscritos nas práticas de fogo camponesas e, ainda, de um contexto científico internacional que começa a interessar-se pelo uso técnico do fogo”.

O projeto ‘Fireuses’, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, contou também com apoio dos municípios de Moimenta da Beira, Sernancelhe, Vila Nova de Paiva, Monchique e Silves e do Instituto Superior de Agronomia, juntando oito investigadores das áreas de história, sociologia e antropologia.

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