Portugal

Projeto “Fireuses” conclui que fogo “fazia parte da paisagem” antes de se tornar catástrofe

Notícias de Coimbra | 2 horas atrás em 24-04-2025

O fogo nas comunidades rurais “fazia parte da paisagem” e da atividade agrícola, só se tornando uma catástrofe quando os incêndios aumentaram de dimensão e se descontrolaram, destruindo áreas florestais, vidas e bens, salientou uma investigadora do projeto ‘Fireuses’.

“O fogo não era percecionado pelas pessoas com o caráter de catástrofe, de dramatismo que hoje é comum. E isso porque o fogo fazia parte da paisagem, fazia parte do quotidiano, da vida das comunidades, que usavam o fogo, não só o fogo doméstico, mas também o fogo na paisagem para, por exemplo, facilitar arroteias, para regenerar pastos, para queimar sobrantes agrícolas”, afirmou Ana Isabel Queiroz.

A investigadora da equipa do projeto ‘Fireuses’ – Paisagens de Fogo falava à Lusa após a apresentação dos principais resultados na Biblioteca Nacional, em Lisboa, com investigadores da equipa ‘Fireuses’ e convidados da Galiza, Tunísia, Brasil e Reino Unido.

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“Portanto, toda essa prática, esse uso do fogo era qualquer coisa como rotina, era qualquer coisa como estando incorporado na agricultura, na cultura das próprias populações”, acrescentou, notando que, mesmo quando o fogo se descontrolava, acontecia na presença das pessoas que estavam a controlar e que apagavam as chamas.

A investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Universidade Nova de Lisboa, salientou, no entanto, que “havia muito menos massa combustível” e, por isso, “era um processo natural”.

“O fogo estava embebido na própria vida das pessoas. Ele começa a tornar-se uma catástrofe, primeiro quando aumenta de dimensão e faz arder as áreas arborizadas, a intensidade do fogo é muito maior e mais difícil de controlar, mas é sobretudo a partir destes fogos mais recentes das últimas décadas que implicaram mortes, destruição de bens das pessoas em grande quantidade”, explicou.

A partir dessa altura, prosseguiu, “o discurso muda e que as pessoas começam a ter temor” dos incêndios, “tanto mais que a sua ligação à terra já é menor” e a comunidade “já não tem o fogo no seu dia-a-dia”.

“[O ‘Fireuses’] é um projeto sobretudo do âmbito da história e nós olhámos para o passado, esse foi o nosso foco, tentar perceber como apareceram os grandes incêndios, quais são as razões que podem ser elencadas para esse desenvolvimento”, esclareceu, por seu lado, Miguel Carmo, investigador do IHC.

O que sobressai do estudo, sublinhou, é a “transição de uma agricultura e de modos de vida fortemente organizados em termos do fogo”, com “um reportório de tecnologias do fogo”, por exemplo em Monchique (Algarve), em que “há várias técnicas com nomes diferentes que servem objetivos, propósitos também distintos num contexto da produção agropecuária”.

“Também era desconhecido que transitámos rapidamente, tanto a norte como a sul, deste cenário, [em que] o fogo faz parte dos saberes e das práticas locais, para um cenário de grandes incêndios e que, portanto, há uma transmutação do fogo que resulta” de “um conjunto de transformações” políticas e científicas e, nos anos 1960, da “transformação agrária portuguesa”, apontou Miguel Carmo.

Para o investigador do ‘Fireuses’, “o êxodo rural, o abandono agrícola, o conjunto destas transformações produziu um novo regime de fogo”.

Embora as serras da Lapa e Nave, no distrito de Viseu, e a serra de Monchique (Faro) sejam “bastante diferentes”, do ponto de vista natural como da sua própria história social, Miguel Carmo destacou que os estudos dos dois casos “mostraram que a transição entre uma agricultura do fogo, portanto uma serra ocupada por agricultura, pastorícia e um uso diverso da paisagem, transitaram entre meados da década de 60 e o início da década de 70, transitaram para um regime de grandes incêndios”.

“Isso foi um dos principais objetivos do projeto e depois um dos principais resultados foi perceber como é que essa transição ocorreu e também tentar, porque não se sabia em rigor, em que momento é que apareceram os grandes incêndios” que depois, desde os anos 70, “têm vindo a agravar até hoje”, referiu.

Em relação à possibilidade de algumas práticas antigas, como o fogo controlado e o contrafogo, poderem ajudar a combater os incêndios rurais, Ana Isabel Queiroz notou que é uma constatação “a partir da história da ciência do fogo, mas também do contacto com as populações”.

Através de entrevistas, os investigadores recolheram testemunhos de que “as pessoas praticavam essa supressão do combustível que existia nas paisagens, toda a lenha, os matos que eram cortados e que serviam para a cama dos gados, o próprio pastoreio que entrou em declínio”.

“Portanto, todas essas práticas de supressão do fogo podem ser mimetizadas para que se consiga que a incidência dos incêndios seja mitigada, através dessa supressão do combustível pelo fogo, por fogo controlado e não fogo descontrolado como temos em grande parte dos incêndios”, disse.

O projeto ‘Fireuses’ – Paisagens de Fogo junta investigadores das universidades Nova de Lisboa, de Coimbra e do Porto e do laboratório associado IN2PAST, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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