Opinião
Privilégio Plus
Admito: sou um privilegiado. Eu, Bernardo, integro o grupo restrito de pessoas que beneficia de um estatuto de privilégio social, financeiro e cultural.
Calma, não me estou a tentar gabar – a minha conta bancária, aliás, discordaria por completo deste meu privilégio – e nem sequer estou a dizer que me reconheço como um privilegiado premium, um daqueles com acesso a contas off shore, piscinas interiores ou closets do tamanho de salas. Estou antes a confessar-me como um privilegiado comum, com um estatuto medianamente sortudo, a quem, desde cedo, foi permitido experimentar férias na Disneyland, brincar com bicicletas e PlayStations ou vestir camisolas do Benfica que não foram adquiridas numa loja dos chineses que não passa recibos.
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Ao crescer, fui-me apercebendo que estes privilégios não eram tão transversais como imaginava. “Espera lá, há gente sem consolas… Há crianças que nunca conheceram o Mickey e miúdos que nunca viram um golo no Estádio da Luz. Será que os pais não gostam deles?”, terei pensado. Mais tarde, e de forma lenta – não nos esqueçamos que os colégios particulares atrasam algumas perceções inescapáveis – percebi que o cenário era pior ainda. Afinal, não só havia carência de camisolas do Benfica e poucos brinquedos para entreter a infância, como também havia miúdos com fome, doentes, e até – imagine-se – infelizes.
Passado o choque, já adulto, abracei com algum remorso este estatuto de privilégio, aceitando-o como uma comodidade que não escolhi ou reclamei, mas que me permitiu estar mais longe das verdadeiras tragédias e vítimas. Apaziguei-me nesta fortuna saborosa que me deixou mais concentrado em brincar e menos exposto às dores que escapam aos olhares das sociedades privilegiadas.
Mas lá estava ele, o privilégio. Invisível aos meus olhos, o maior dos sanguinários estabelecia-se, reforçava-se como o fenómeno global que provocou mais vítimas ao longo da História, ultrapassando largamente a fome, a doença ou a guerra, no ranking dos males mais fatais ao Homem. E hoje, procurando fazer um ato de contrição que me redima de toda uma vida de liberdade e conforto, quero denunciar o privilégio e recordar um dos seus mártires, uma das figuras que não viu o seu drama reconhecido. A vítima dá pelo nome de Edgar e a sua história é fácil de contar.
Edgar vivia em Paris, onde trabalhava como mordomo numa extraordinária mansão que pertencia a uma riquíssima matriarca. Homem de meia-idade, de origens humildes e talentos finitos, o pobre Edgar trabalhava a tempo inteiro, sem fins-de-semana, incumbido da lide de toda a mansão, responsável por alimentar os animais e cuidar das tarefas domésticas.
OPINIÃO | BERNADO NETO PARRA
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