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Pessoas com deficiência descobrem o seu traço e o seu corpo em ateliê da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra

Notícias de Coimbra | 5 anos atrás em 10-11-2019

No ateliê da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC), pessoas com deficiência trabalham o corpo. Enquanto desenham, fala-se de autorrepresentação, ganha-se amor-próprio e descobre-se que “cada um tem o seu traço, cada um tem o seu corpo”.

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Mário não fala, não ouve e não domina a linguagem gestual. Está sentado na sua cadeira de rodas, a terminar um desenho no ateliê, numa manhã soalheira de outono. Como não consegue esticar os braços, vai arrastando a cartolina para pintar no sítio onde quer, em riscos carregados, de lápis de cor, que agarra nos nós dos dedos.

Com auxílio de perguntas escritas num papel, Mário Carvalho diz ‘sim’ com a cabeça. Diz que gosta de pintar – que é a coisa que mais gosta -, para logo de seguida voltar ao desenho de traço expressivo e forte, por onde fica compenetrado.

“A condição motora dele dá-lhe um traço distinto”, diz à agência Lusa a professora de expressão plástica da APCC, Suzete Azevedo, que já no dia anterior tinha atirado para outra turma, enquanto revia algumas das obras, um lamento, em jeito de brincadeira: “Andei tantos anos a estudar para isso e alguns de vocês já o têm [o traço distinto]”.

O projeto chama-se “CRU – O Corpo (Im)Perfeito”, começou em dezembro de 2018 e culmina com a apresentação pública dos trabalhos, com uma exposição que começa no Porto, no Artbeat, em 25 de novembro (onde fica um mês) e que depois segue em itinerância para Coimbra e Lisboa, onde, para além dos desenhos, haverá também legendas em jeito de pequenos poemas, a acompanhar algumas das obras, por parte de uma das alunas do grupo, Regina Graça.

Ao longo de um ano, foram criados cerca de 300 trabalhos, dos quais mais de 150 vão ser expostos. Alguns – poucos – são originais, sendo a maioria recriações e reinterpretações de imagens, fotografias ou pinturas mais ou menos conhecidas, onde o corpo é central.

Por lá, encontram-se diferentes representações de corpos. Corpos gordos e magros, coxas grandes, ancas largas, mamas pequenas e assimétricas, corpos sentados e de pé, de costas ou de frente, nus ou vestidos, tímidos ou expansivos, com cicatrizes, de cotovelos esfolados, sorridentes ou tristes.

Todos os corpos têm espaço neste projeto onde se chegou à conclusão de que “não há bonito nem feio”, sublinha Suzete Azevedo.

São cerca de cinquenta utentes divididos em várias turmas a participar nos ateliês de Suzete, todos eles com corpos diferentes e limitações distintas, num projeto onde se “olha sempre para a competência e não para a dificuldade”.

Ao longo das aulas, Suzete Azevedo procurou esbater às turmas as ideias do que é bonito ou feio, socorrendo-se de representações da figura humana, muito distintas, desde retratos da fotógrafa Cindy Sherman, trabalhos da escultora Louise Bourgeois ou das pinturas cubistas de Picasso.

Apesar de as aulas teóricas em torno do belo e do feio e da representação da figura humana terem sido apenas no início do projeto, a discussão está sempre presente, em parte provocada pela professora de expressão plástica.

“Acabamos quase todos os dias por discutir questões da intimidade e sobre a figura e a representação da pessoa com deficiência. Vê-se nas pessoas com deficiência quadros depressivos que têm muito a ver com a sua representação e intimidade. Não querendo que o projeto tivesse uma carga nem pornográfica nem quase erótica, queríamos discutir sobre o corpo, o corpo com deficiência, o que é ter um corpo com deficiência e o que é ser bonito”, explica.

Já na reta final do projeto neste ano, os alunos começaram a trabalhar com modelo vivo.

Na quarta-feira, Isabel, de cadeira de rodas, foi a ‘cobaia’ dos alunos.

“A cadeira de rodas faz parte do corpo da Isabel?”, pergunta Suzete à turma.

“Na Isabel, faz bastante”, responde um dos alunos.

Liliana Ferreira, uma das alunas, olha atentamente para Isabel, que está no meio da sala, na sua cadeira de rodas.

Muda de posição, vê o enquadramento e começa a desenhar o apoio do braço da cadeira de Isabel. Segura com a caneta de forma assertiva, com a boca, e vai fazendo os traços numa aplicação do seu telemóvel. Em pouco mais de dez minutos, o desenho está feito.

Liliana, de 38 anos, conta à Lusa que, depois de mais de um ano a usar a boca para desenhar, acha que já tem um traço próprio, distinto.

A “adorar” o projeto em torno do corpo – onde não há “copy e paste” das imagens -, Liliana também reconhece que o “CRU” ajudou a refletir sobre o que é isso de ser belo ou feio.

“Acho que não há feio. Cada um é bonito à sua maneira, cada corpo é imperfeito mas perfeito à sua maneira”, salienta.

Com este projeto, resume, “cada um tem o seu traço, cada um tem o seu corpo”.

Diogo Sacramento, de 29 anos, foge dos traços minimais de Liliana e assume um tipo de desenho que trabalha a sombra e o pormenor.

Há seis anos na oficina, foi o jovem que desafiou Suzete a fazer uma oficina sobre o corpo. Porquê? “Não sei. Veio-me à cabeça e disparei”, disse.

Neste projeto, nenhum trabalho cansa, afirma Diogo, salientando que, no ateliê, “nem todos têm a mesma forma de desenhar o corpo”, mas são essas imperfeições que vão saindo de cada um “que tornam o trabalho diferente e, ao mesmo tempo, bonito”.

“Cada pessoa tem o seu corpo e são até mais bonitos por causa das imperfeições. Há quem não goste de corpos feios e deformados, mas isso não interessa”, vinca Nelson Pires, de 39 anos.

Nino Conceição, que é um estreante no ateliê, reitera: “Todo o corpo é bonito. Tudo tem beleza. É injusto dizer: ‘Este gajo tem um corpo feio’”.

“Isso não existe”, vinca Nino, que encontrou no ateliê de expressão plástica uma forma de se “exprimir”.

No projeto, os alunos começaram a ter uma melhor autorrepresentação do seu corpo, mas também “muito mais amor-próprio”, constata Suzete Azevedo.

“Percebemos que aquela mão que não é direita é linda e trabalhá-la e representá-la vai mudar a ideia do que eles têm do que é bonito”, salienta a professora.

Durante este ano, houve também “grandes revelações” durante a oficina.

“Falar sobre o corpo, para alguns, é já uma revelação. Por mais que não se queira, vamos sempre acabar a falar na intimidade, onde ainda há muito a ideia do tabu. E percebem também que o corpo pode também ser só carne e osso e não dão tanta importância ao formato estereotipado do que é o bonito – perceberem que o seu corpo torto também é bonito e funcional”, resumiu.

A partir da pintura, Suzete vê no projeto meios de expressão e de terapia, mas também rampas e elevadores imateriais, a caminho de uma outra “acessibilidade”.

“As pessoas ainda continuam a achar que a acessibilidade é pôr uma rampa, quando não tem nada a ver com isso. É mais fácil pegar numa pessoa às costas para a levar a uma sala de aulas do que ela nunca lá ir”, vincou.

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