Opinião
Os verdadeiros amigos de Cristiano
Nos últimos 15 anos, eu – como a boa maioria da população mundial – dispensei muitas e largas horas da minha vida pessoal a alimentar o debate: “Quem é o melhor jogador do mundo? Cristiano Ronaldo ou Lionel Messi?”.
O debate – todos se lembrarão – fazia-se à escala global e repetia-se todos os anos pela boca de quem apreciava muito futebol, de quem não apreciava assim tanto futebol, e, até, julgo, por quem nunca tinha visto um jogo de futebol. Todos participavam na discussão.
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Importava, só, estar atualizado sobre os recentes golos e fintas, reforçar ou reciclar argumentos e, no final, ter uma posição bem firmada sobre quem era o melhor, fosse ela mais favorável ao portento atlético do Cristiano ou à criatividade canhota do Lionel.
A evolução do debate foi crescendo, gradualmente, à mesma velocidade que o argentino blaugrana e o português blanco iam inventando dribles e somando títulos em catadupa, repartindo, ano sim, ano não, o prémio de melhor jogador de futebol do mundo – estatuto simbolizado por uma bola banhada a ouro, com batismo francófono.
Prémios individuais, prémios coletivos, fortunas, patrocínios, pesos, alturas, personalidades, historiais clínicos ou até – imagine-se – as qualidades físicas das respetivas namoradas… Nenhum critério era desconsiderado quando o exercício passava por comparar os dois príncipes do desporto-rei.
A dada altura, as reflexões sobre os dois antagonistas já ultrapassavam todos os méritos futebolísticos:
– Ah, mas o Cristiano é mais bonito do que o Messi – dizia um.
– Pois, mas isso é porque o Messi é mais humilde, não se preocupa com penteados e brincos, só em jogar futebol – retorquia outro.
– Então, o Cristiano não se preocupa em jogar futebol!? É o primeiro a chegar ao treino e o último a sair!
– E achas que o Messi não treina que nem um doido? Alguém lhe pagava aqueles milhões todos se o gajo não trabalhasse?
– Aqueles milhões todos? Ganha bem menos milhões do que o Ronaldo…
Hoje, à distância, o debate parece tonto. Ou, pelo menos, a escala do debate será tonta. Afinal, era só futebol…
Ainda assim, contrariando a racionalidade e o fair-play, o derby Ronaldo vs. Messi era capaz de parar o trânsito e inflamar pubs cheios de gente fanática por bola; capaz de criar exércitos devotos, prontos para acesas trocas de argumentos, que, muitas vezes, se faziam acompanhar de gestos bruscos e perdigotos na cara.
E, em Portugal, por maioria de razão, o fenómeno era ainda mais intenso. A defesa do nosso ídolo coletivo, o jovem madeirense que desafiou o pobre destino que a vida lhe reservava e conquistou o estrelato sem pedir licença, era encarada com um fervor sem paralelo. Bastava a sugestão de um elogio dirigido a Messi para que algum português saltasse da cadeira, pronto a marchar contra os canhões, cantando as proezas do nosso Ronaldo e exaltando os defeitos do palerma que jogava na Catalunha.
Nestas circunstâncias, a minha vida ficava difícil. Fã incondicional do talento de Lionel, profundamente convicto de que o argentino é o melhor jogador de futebol que povoou o Planeta Terra, era muitas vezes acusado de falta de patriotismo. A minha preferência pelo minorca e subsequente crítica ao Deus Cris levava a que o meu amor à Nação fosse questionado até por quem me era mais próximo.
Quando, na verdade, era eu quem mais zelava pelo nosso craque… eu que o conheço como poucos… eu, que, muito cedo, percebi a magnitude da obstinação de Cristiano Ronaldo, um homem a quem a ideia de não ser o melhor do mundo no seu ofício provoca urticária e até depressão.
E como devemos lidar com um obstinado? E, em particular, com um obstinado a quem desejamos o melhor possível? Dizendo-lhe que não presta, naturalmente. Transmitindo-lhe a nossa certeza de que não conseguirá alcançar aquilo a que se propõe.
O obstinado não conseguirá reagir à frustração da descrença. Vai correr, saltar e suar como se não houvesse amanhã, só para nos fazer engolir o ceticismo até aos limites da goela: “Ai não consigo!? Espera, lá, que eu já te mostro quem é que não consegue!”. E foi dessa forma que Ronaldo prosperou, ano após ano, incentivado pelos comentários cínicos e desagradáveis de quem – como eu – queria o seu bem.
Agora, façam-me, então, justiça. A mim e aos muitos portugueses que criticaram ferozmente o nosso ídolo ao longo dos anos, os verdadeiros amigos de Cristiano.
P.S. Cristiano, se me permites, como bom e verdadeiro amigo, dirijo-me a ti. Desculpa a má onda e o vernáculo, mas não jogaste uma merda neste Europeu.
Não jogámos uma merda, para ser rigoroso… Mas está tudo bem! A vida segue e a seleção continua aí, à mercê das alegrias que ainda nos podes dar.
Convém só que deixes jogar os colegas que estão em melhor forma, que não te maces em jogos irrelevantes para engordar estatísticas individuais, que não insultes a mãe do selecionador quando ele te substitui, que não marques todos os livres diretos entre o meio-campo e a baliza, e, por fim, que te concentres apenas em ganhar.
O resto está garantido… Não tenho dúvidas de que conseguirás conciliar tudo isto com aquela equipa saudita onde jogas com mais 8 estrangeiros milionários e 2 locais mediamente remunerados. Se o Messi consegue, tu também consegues!
OPINIÃO I BERNARDO NETO PARRA
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