Opinião
Os idiotas úteis
Há quem atribua a cunhagem da expressão ‘idiota útil’ a Lenine, mas, à falta de evidências que suportem essa teoria e sabendo que a predisposição para a lambebotice é quase inata no ser humano, eu acredito que ela data pelo menos da Roma Antiga. Ou então é a influência que os Monty Python tiveram em mim, levando-me a imaginar uma cena que podia ser retirada de “A Vida de Brian”: Idiotus Utilis, tribuno da plebe que se mantinha com uma capa de amigo próximo do povo, sendo ridicularizado em privado pelos experientes senadores cujos interesses servia com empenho, sem que o próprio perceba ser ele a vítima da chacota.
Não havia Internet nos tempos romanos, mas essa é mesmo a grande diferença em relação a 2024, porque idiotas úteis é o que não falta por aí. O seu campo de atuação preferencial é precisamente as redes sociais, em particular o Facebook, onde atuam ora como grandes megafones acríticos das ideias do seu partido, ora como vigilantes que não deixam passar qualquer ideia contrária.
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Como não são, geralmente, políticos no sentido mais clássico do termo (ou, pelo menos, assim gostam de se descrever, até porque se há ideia que está na moda é essa de os políticos jurarem a pés juntos que não o são), apresentam-se como meros cidadãos. Ironicamente, uma das suas principais características é conviverem muito mal com a cidadania dos outros.
Combatem ideias dissonantes com o mesmo fervor, e muitas vezes com o mesmo grau de alucinação, com que Dom Quixote combatia moinhos de vento. Perante uma crítica à sua cor partidária, lançam questões como «Mas quem é este indivíduo?», não sendo capazes de vislumbrar a contradição por detrás do facto de serem esses mesmos indivíduos os eleitores a quem, ciclicamente, tentam convencer da bondade das suas intenções e dos seus correligionários. Perante um reparo a uma medida ou falta dela, lançam insinuações sobre eventuais ambições políticas de quem o faz, medindo os outros pela sua própria obsessão com lugares e cargos.
Infelizmente, a influência dos idiotas úteis é muitas vezes subestimada, apesar de se infiltrar na sociedade e alimentar polarizações. Pessoalmente, percebo a falta da paciência que o comum dos mortais pode ter para lidar com personagens tão empenhadas na sua própria mitologia pessoal, tão deslumbradas com uma ideia abstrata de ‘ser alguém importante’, ao ponto de esvaziar a sua própria personalidade. Mas eles representam uma ameaça concreta ao diálogo civilizado, que é (pelo menos a maior parte das vezes) a base para a evolução da sociedade. São agentes corrosivos que, no seu ridículo, vão mesmo assim desgastando os pilares da democracia.
Por isso, é importante que possamos reconhecê-los, denunciá-los e encontrar formas eficazes de limitar o respetivo impacto, contrapondo uma cultura de respeito às suas intenções interessadas e interesseiras. E talvez a forma mais eficaz de o fazer seja nunca nos calarmos e, como cantava José Mário Branco (que tenho a certeza que também não teria complacência alguma para idiotas úteis), irmos sempre metendo um pauzinho na engrenagem.
OPINIAO I PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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