Opinião

Do país que se deixa arder

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | 1 hora atrás em 22-09-2024

É um clássico de verão, tanto quanto a Mariah Carey é um clássico de Natal: ano após ano, o país arde, hectares de floresta desaparecem, jornalistas da capital precipitam-se para o interior do país para perguntar às pessoas afetadas o que estão a sentir e autoridades em áreas que nem sabíamos que existiam invadem os ecrãs televisivos com soluções tão milagrosas que ficamos todos a pensar que, no ano seguinte, tudo correrá bem. Mas não é isso que acontece.

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Como alguém que não é especialista na matéria, o único contributo que me sinto capaz de oferecer é recordar a frase «Loucura é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes». Porque é difícil acreditar que na origem da aparentemente infinita sucessão de grandes incêndios florestais que se regista em Portugal não esteja uma infinita sucessão de erros repetidos. De loucura, portanto.

No mais, recorro a quem é, de facto, especialista, mas que o é todos os dias de todos os meses de todos os anos, de quem age e alerta continuamente para os perigos com que nos acabamos por confrontar sempre nos meses de mais calor. Aos outros, pouco mais do que estrelas de reality show, motivados tanto por sonhos de estrelato como por interesses corporativos, prefiro nem escutar.

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E o que nos dizem então os verdadeiros especialistas?

Desde logo, precisamente que não podemos continuar a adotar as mesmas políticas e medidas, ficando-nos por ações que vão pouco além da cosmética, como a criação de faixas de gestão de combustível que fazem uma diferença mínima em dias mais complicados do ponto de vista meteorológico (e há-os em cada vez maior número, devido às alterações climáticas) ou podem até ser contraproducentes, eliminando zonas de floresta autóctone, potencial aliada da prevenção e do combate.

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Dizem-nos também que é imperioso eliminar a distância que existe entre a lei a sua aplicação – que é tão grande quanto a da área ardida a cada época de incêndios. Por exemplo, a legislação que estipulou a proibição de novas plantações de eucalipto pouco mais originou do que uma corrida à obtenção de licenças antes da sua entrada em vigor, uma vez que nem estipulou a obrigatoriedade de reconversão nos casos em que se verificam ilegalidades. Em consequência, a área de eucaliptal ilegal não para de crescer.

Mas possivelmente o mais relevante entre o muito que nos é dito por esses especialistas é que, num país em que extensas áreas florestais ardem repetidamente, acabando por ser deixadas frequentemente ao abandono, sem qualquer perspetiva ou estratégia eficaz para reverter a situação, é indispensável uma transformação profunda do território rural e da forma como este é gerido: os pequenos proprietários, muitas vezes sem alternativas, precisam de apoios que lhes permitam atuar de forma sustentável. Isso inclui sistemas de financiamento ajustados, incentivos para a criação de cadeias de valor regionais e uma verdadeira aposta na gestão agrupada dos territórios.

Mas com o diagnóstico feito e a terapêutica encontrada (e o que atrás ficou escrito é largamente consensual), o que nos tem impedido então de enfrentar e ultrapassar o problema dos incêndios em Portugal? Acredito que não existe outra razão que não seja não haver floresta no Terreiro do Paço. Em boa verdade, o poder político só sente o calor dos incêndios quando a temperatura começa a subir nas televisões. E basta essa temperatura começar a descer para que nenhuma mudança profunda acabe por acontecer.
Feitas as contas, nesta como em outras matérias, uma capital macrocéfala é sinónimo de um país acéfalo. Um país de loucos, pode dizer-se.

OPINIÃO I PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO

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