Opinião
O tira-dentes
Houve um tempo, quando eu trabalhava em Gouveia que ia e vinha, todos os dias, a Coimbra. Mais tarde, quando me mudei para a Guarda, insisti no mesmo caminho. Era duro, mas o carro não era meu, o gasóleo também não e, por uma ocasião, desci à capital para voar, já na altura pejado, da Portela para Manchester, a ver a bola. O meu patrão de então pagava tudo, desde que eu fugisse ao tédio. Ora o tédio insiste em vir ter comigo. E não foi uma “bad trip”. Aquele rock, punk, aquela energia arrastou Coimbra e fez a cidade sair da modorra. Era no tempo em que havia States e Scotch.
Agora temos Salão Brazil e daqui por uma semana, o tributo a valentes que animaram e sonorizaram muito álcool, alguma ganza, talvez duas linhas e alguns submarinos. Um Torpedo, chamado Victor e um Suede, apelidado Pedro, vão dar gás e potência ao colunato. Colunas berrantes para abafar o barulho das dores que o senhor doutor prometeu. Dotes nos dentes, um feitiço lançado a nós, poviléu, vindo de um homem capaz de construir um aeroporto em 1460 dias, talvez mais um, não vá por lá apanhar um bissexto. Ora é ventura digna e talvez a gente o chame, mas previnam o bom povo de Antanhol.
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E eu, retomava as viagens na carreira, aérea pois então, veria a Sofia de cara lavada e sorridente e espreitava os portões de ferro, para olhar aos calabouços. Pedia receita ao doutor, ao outro, agora que andam todos aflitos com a crise na imprensa, alguns, que outros congeminam e batem palmas. E afundam o submarino, mas a cerveja não topa copo e bebe-se. A sorrir, como a dor de dentes, a mezinha tornada feitiço.
Enfim, sonhos de quem se passeou de carro e agora gasta solas a cumprir caminho. Adiante, Fortuna à Blue House, pipos abertos e lagaradas que vem aí música. Da boa. Já o Aníbal, não o da má moeda nem o das contas certas, é outra generosidade. Empurrado do Pátio da Inquisição, fez-se a S. Martinho do Bispo e sem avisar Sant’Ana, que também não liga aos jornais, lutou pela causa dos pobres.
Ainda com a música a assolar-me os tímpanos, “Fairy Tale, que o Shane MacGowan abalou-se e eu ainda o vi, há duas décadas atrás, sem lhe perder os sonhos. Na Queima das Fitas, no tempo em que os republicanos não agrediam jornalistas.
Aníbal Duarte de Almeida foi como o pastor e queijeiro, que por estes dias desceu de Cativelos para ofertar almoço. De Natal e generosidade. Lá, de Gouveia, Armindo Ferreira trouxe bacalhau, batatas e couves. E não esqueceu requeijão e doce de abóbora. Tão pouco a sua arte e no alforge veio também queijo da Serra e pão regional.
Foi tudo na Casa dos Pobres, que deve a existência ao Aníbal. Houve talhe de barba e bigode, nada extravagante ou excêntrica, como manda a Lei e a Grei, mas anunciou-se a merenda. Ora sempre me corroeu as entranhas esta moda, velhaca, de se publicitar a generosidade, trazendo ao cénico os que precisam do cabaz. Todavia o que mais me assarapantou não foi a divulgação da bondade, antes essa nota lapidar de quem não podendo construir prédio, gasta pecúlio em equipamentos. Uma espécie de canto, de bio canto, assim sejam as hortaliças da beira Mondego, e lá estou eu outra vez a desviar-me para o arrozal e a olhar para Cantanhede, onde o edifício não teve fantasia nem prenda. Retomemos a grandeza dos humildes e essa Casa dos Pobre que teve a piedade de anunciar repasto e convidado. Uma inusitada ventura, intrometida numa tradição larga de quem cumpre sem prometer. Juntem-se, pois, as personalidades aos pobres, esqueça-se o que disse Aníbal Duarte de Almeida ao ‘Correio de Coimbra’, em 2007 e tragam-nos, venham todos, desçam e juntem-se ao povaréu e à plebe. O solidário vistoso faz-nos falta, mesmo que desconexo.
E que disse Aníbal? “Para alguns políticos, os pobres não têm voto nem sindicato”. Mas eles não entendem a magnanimidade, o solidário que caminha solitário. E vai de aparecer, convidados especiais, tal como no concerto, merecido tributo aos Tédio Boys.
O resto é foleiro, siga para a próxima, tirem a fotografia e andemos. Com magnanimidade ou malignidade. Tão confuso fico com esta propensão social e revisteira da pobreza. Que se quer recatada e assistida sem espalhafato.
Talvez tenha por lá sido um “Cover de Bruxelas”, programa da RUC, gizado por Rui Ferreira que também magicou tributo.
Mas há quem confunda tributo com tribuno e não saia do andarilho.
Vai daí, talvez o tira-dentes consiga arrebanhar mais uns votos, com estas coisas das notas nos envelopes, mais as gémeas, as contas certas e a má moeda. Os irmãos e as ações.
Vão tempos aflitos e precisamos da exodontia. E da música dos Pogues, malandros, traduzidos em português da Beira por pogos, rodas auxiliares para manter o equilíbrio durante a descolagem.
“Não pude fazer tudo sozinho, mas construí os meus sonhos contigo”.
Tragam o Tédio rapazes, que isto anda tudo marado, a catar voto em miséria alheia. E que cantem os bêbados e os sóbrios. Mas cantem. Ver se calam o tira-dentes
Opinião | Amadeu Araújo – Jornalista
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