Opinião
O Som da Vida
Na minha rua há uma senhora que se senta à porta da sua casa e distribui sorrisos. Ela não é mãe, mas tem os olhos de quem sabe cuidar. Hoje sentei-me com ela e, ao ouvi-la, tentei descobrir de onde vem a ternura das suas palavras, num semblante duro e doce em simultâneo. Naquele momento, percebi que supostamente todo o meu conhecimento deixou de ter o sentido probatório da minha existência.
Foi como tirar o pé do travão e notar que a vida é esse instante em que eu escrevo. Nessa imensidade das contradições humanas, dos encontros aleatórios, dos cumprimentos dirigidos a estranhos, os meus olhos ainda se emocionam quando oiço os sinos badalarem em horas diferentes do dia, é como uma prece. Penso que moveríamos céus e montanhas para aproveitar o instante, enquanto oiço o som da vida.
Eu não sei o que consegue avistar da janela ou da varanda da sua casa, e qual é o significado do tapete à sua porta, eu pouco sei, mas, se me sobra lucidez, posso adivinhar: é uma casa – e isso é o que importa. Não precisamos saber o porquê dos homens insistirem nas guerras e o sentido da invasão de propriedade.
A dureza metódica dos dias não pode ser a nossa ruína. Seria bom se já soubéssemos abreviar as tristezas e sorrir genuinamente como uma criança – se bem me lembro o adulto já foi uma.
Tenho consciência da minha pequenez, do meu estado de espírito quando julgo os outros, mesmo sendo eu capaz de gestos de compaixão. Tenho dúvidas se amanhã a senhora sorridente estará à porta, e se o meu corpo sobreviverá, porque ainda se emociona com a beleza e o caos.
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