Portugal
O que se sabe sobre o relatório de abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal?
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica apresentou hoje, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, o relatório do trabalho iniciado em 11 de janeiro de 2022.
A Comissão, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, foi criada por iniciativa da Conferência Episcopal Portuguesa, numa decisão tomada no final de 2021.
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a própria sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
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Número de testemunhos validados pela Comissão
A Comissão Independente validou 512 dos 564 testemunhos recebidos, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de vítimas da ordem das 4.815.
Estes testemunhos referem-se a casos ocorridos no período compreendido entre 1950 e 2022, o espaço temporal que abrangeu o trabalho da comissão.
O sumário do relatório, contudo, revela que “os dados apurados nos arquivos eclesiásticos relativamente à incidência dos abusos sexuais devem ser entendidos como a ‘ponta do iceberg’”.
Quando ocorreu o maior número de casos
As décadas de 1960, 70 e 80 do século passado foram as que registaram um maior número de casos de abuso sexual no seio da Igreja em Portugal.
Muitos casos terão ficado por identificar, pois foi identificada, no que respeita aos arquivos diocesanos, nomeadamente, “a ambiguidade que caracteriza uma parte significativa da correspondência eclesiástica do século XX”.
“É frequente o problema dos abusos sexuais não ser referido explicitamente”, diz o relatório.
Casos reportados ao Ministério Público
A Comissão enviou para o Ministério Público 25 casos de entre os 512 testemunhos validados recebidos ao longo do ano.
A prescrição dos casos, por um lado, e o anonimato por outro, são as principais razões para este reduzido número de casos entregue à Justiça.
Hoje, na apresentação do relatório da Comissão, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, e membro daquele grupo de trabalho, reconheceu que, também a maioria dos 25 casos enviados para o Ministério Público já prescreveu.
Caracterização das vítimas
A idade média das vítimas é hoje de 52,4 anos, 52,7% são homens, 47,2% são mulheres e 88,5% são residentes em Portugal continental, principalmente nos distritos de Lisboa, Porto, Braga Setúbal e Leiria, “mas os abusos estão espalhados por todos o país”.
Dos abusados, 53% continuam a afirmar-se católicos e 25,8% são católicos praticantes.
A percentagem de licenciados entre as vítimas de abusos é de 32,4%, enquanto 12,9% são pós-graduados.
Em criança, os abusados que deram os seus testemunhos, residiam com os pais (58,6%), 1/5 estavam institucionalizados, enquanto 7,8% pertenciam a famílias monoparentais.
Caracterização dos abusadores
Quase todos os abusadores das vítimas que contactaram a Comissão Independente eram homens e maioritariamente padres.
Segundo a psicóloga Ana Nunes de Almeida, membro da comissão, 97% dos abusadores eram homens e em 77% dos casos padres, além de que em 47% dos casos o abusador fazia parte das relações próximas da criança.
Em 52% dos casos, as vítimas só revelaram o abuso de que foram alvo em média 10 anos depois de ocorrido e em 43% dos casos essa denúncia aconteceu apenas quando contactaram a comissão.
Em 77% dos casos as vítimas nunca apresentaram queixa à igreja e só em 4% dos casos houve lugar a queixa judicial.
O grupo de trabalho aponta que “o perfil dos abusadores é variado”, predominando “adultos jovens com estruturas psicopatológicas, agravadas por fatores de risco como o alcoolismo ou o mau controlo de impulsos”.
Tipo de abusos sofridos pelas vítimas
Os homens sofreram principalmente “sexo anal, manipulação de órgãos sexuais e masturbação”, enquanto as mulheres sofreram, na maior parte dos casos, de “insinuação”.
Os abusos ocorreram principalmente entre os 10 e os 14 anos de idade (a média era de 11,2 anos, sendo de 11,7 no caso dos rapazes e de 10,5 no das raparigas), 57,2% foram abusados mais do que uma vez e 27,5% referiram que foram vítimas durante mais de um ano.
Locais onde tiveram lugar os abusos
A maior parte dos abusos ocorreu em seminários (23%), na igreja – em diversos locais, inclusive no altar – (18,8%), no confessionário (14,3%), na casa paroquial (12,9%) e em escolas católicas (6,9%).
No caso dos rapazes, em 77% dos casos o abusador foi um padre.
O que leva as vítimas a calarem as agressões
A Comissão Independente reconhece que “habitualmente, são as vítimas [de abuso] a iniciar o silenciamento, por sentimentos de medo, vergonha e culpa”.
No sumário do relatório, divulgado esta manhã, a comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht aponta para que seja “uma expressiva minoria” o número das vítimas que revelam os abusos.
Acrescenta que, quando o fazem, as vítimas “concretizam-no junto de pessoas próximas”, dependendo da atitude destas “a evolução futura da situação”.
Em fases posteriores da vida adulta, “é necessário suporte psicológico e/ou psiquiátrico para intervir em diversos quadros clínicos, como as perturbações de ansiedade e do humor depressivo ligadas a situações de stress pós-traumático”, acrescenta a comissão.
Visão da hierarquia da Igreja sobre a luta contra os abusos
Na generalidade, a hierarquia católica portuguesa “é favorável” à posição do Papa na condenação dos abusos.
“Com algumas divergências, e em alguns casos, a opinião dos bispos e dos superiores gerais, que foram entrevistados individualmente, é manifestamente favorável ao transmitido pelo Papa” Francisco, que considerou em 2019 na Carta Apostólica “Vos estis lux mundi” que “os crimes de abuso sexual a crianças são crimes que ofendem a Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e afastam-nas da comunidade”, afirmou hoje Pedro Strecht.
“Sabemos também que a percentagem da sua existência enquanto praticada por membros da Igreja é muito pequena, sobre a realidade do assunto dos abusos sexuais de menores em geral”, acrescentou Pedro Strecht.
Primeira reação do episcopado ao relatório
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) reconheceu hoje que os resultados do relatório da Comissão Independente não podem ser ignorados e admitiu estar-se perante uma situação “dramática”.
José Ornelas, que ainda esta tarde dará uma conferência de imprensa, em Lisboa, deixou uma primeira palavra “para as vítimas” e um “grande agradecimento” ao grupo de trabalho.
“Daquilo que vimos, ouvimos e não podemos ignorar, é uma situação dramática que vivemos e não é fácil ultrapassá-la”, mas “não nos iludíamos também sobre aquilo que havia de ser [o resultado do relatório]”, disse José Ornelas.
O também bispo de Leiria-Fátima, deixou uma primeira “lembrança para as vítimas”, pelas quais o trabalho da Comissão foi feito.
José Ornelas sublinhou a tarefa levada a cabo pela Comissão, constituída por “pessoas competentes, pessoas apaixonadas pelo seu trabalho, pessoas que viveram emocionalmente tudo aquilo que fizeram, porque não se pode passar por isto sem emoção profunda, e empatia, mas que trabalharam independentemente, porque foram essas as condições desde o início”.
Sugestões da Comissão para a Igreja
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica defende a constituição de uma nova “comissão para continuidade do estudo e acompanhamento do tema”, com membros internos e externos à Igreja.
A Comissão recomenda “o reconhecimento, pela Igreja, da existência e extensão do problema e compromisso na sua adequada prevenção futura”, nomeadamente através do “cumprimento do conceito de ‘tolerância zero’ proposto pelo Papa Francisco”.
A adoção do “dever moral de denúncia por parte da Igreja e colaboração com o Ministério Público em casos de alegados crimes de abuso sexual”, o pedido “efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua materialização”, bem como a “formação e supervisão continuada e externa de membros da Igreja, nomeadamente na área da sexualidade (sua e das crianças e adolescentes)”, são outras recomendações que a comissão deixa à hierarquia da Igreja.
O “apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras” é encarado, também, como responsabilidade da Igreja, em articulação com o Serviço Nacional de Saúde.
Sugestões da Comissão para a sociedade civil
A Comissão Independente sugere que a prescrição dos crimes de abuso aumente para os 30 anos da vítima, pedindo à Assembleia da República a alteração da lei.
“Há um ponto que nós nos limitamos a fazer que tem a ver com o artigo n.º 118 do Código Penal, que diz que a vítima do crime sexual, sendo menor de idade, pode apresentar queixa até fazer 22 anos. Há aqui uma suspensão do prazo de prescrição, mesmo que prazo de prescrição tenha decorrido enquanto a vítima não havia feito 23 anos. Esse prazo fica suspenso”, disse o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio.
De acordo com Álvaro Laborinho Lúcio, tendo em conta a idade das vítimas, a comissão chegou à conclusão de que a idade deve ser aumentada.
Outras recomendações à sociedade civil incluem a “realização de um estudo nacional sobre abusos sexuais de crianças nos seus vários espaços de socialização”, o “reconhecimento inequívoco dos Direitos da Criança”, o “empoderamento das crianças e famílias sobre o tema: o papel da Escola”, o “aumento da idade da vítima para efeitos de prescrição de crimes” e a “celeridade da avaliação e resposta do sistema de justiça”.
O grupo de trabalho sublinha ainda a necessidade do “reforço do papel da comunicação social na investigação e tratamento do tema” e o “aumento da literacia emocional sobre as verdadeiras necessidades do desenvolvimento infantojuvenil, sobretudo no campo afetivo e sexual”.
Composição da Comissão Independente:
A equipa, organizada de forma paritária e multidisciplinar, foi integrada por Pedro Strecht (coordenador, médico pedopsiquiatra), Álvaro Laborinho Lúcio (juiz conselheiro jubilado), Ana Nunes de Almeida (socióloga), Catarina Vasconcelos (cineasta), Daniel Sampaio (médico psiquiatra) e Filipa Tavares (assistente social).
A Comissão contou ainda com a participação de Vasco Ramos (sociólogo), Ana Sofia Varela (psicóloga clínica) e Catarina Pires (jornalista).
Para o estudo dos Arquivos da Igreja, a Comissão convidou Francisco Azevedo Mendes (historiador), que constituiu autonomamente o Grupo de Investigação Histórica (GIH) com outros três investigadores: Júlia Garraio (especialista em estudos de género), Rita Almeida Carvalho (historiadora) e Sérgio Ribeiro Pinto (historiador).
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