Saiba o que falhou no dia do maior incêndio de sempre
Falhas na programação do socorro e nas comunicações, e abandono das populações foram identificados pela Comissão Técnica Independente de análise aos incêndios de outubro de 2017, apesar de este fenómeno inédito ter resultado da conjugação de fatores meteorológicos.
Criada em 07 de dezembro de 2017, pela Assembleia da República (AR), para analisar os grandes incêndios rurais de 14, 15 e 16 de outubro nos seis distritos da região Centro (Aveiro, Castelo Branco, Coimbra, Guarda, Leiria e Viseu) e em dois do Norte (Braga e Viana do Castelo), a Comissão Técnica Independente (CTI), constituída por 12 peritos (seis indicados pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e outros tantos pelo parlamento), 11 dos quais integraram a CTI de avaliação dos fogos que deflagraram em 17 de junho de 2017 em Pedrógão Grande, voltou a ser presidida pelo professor universitário João Guerreiro.
A Comissão, cujo mandato terminou em 19 de março de 2018 – o prazo foi prorrogado um mês, na sequência da solicitação, nesse sentido, da CTI, perante “a enorme multiplicidade e diversidade de situações, a grande dispersão geográfica daqueles incêndios e das suas consequências” –, entregou o relatório (‘Avaliação dos incêndios ocorridos entre 14 e 16 de outubro de 2017 em Portugal Continental’) na AR no dia seguinte (20 de março).
Até à divulgação do documento, vinha sendo que referido que os incêndios de outubro na região Centro provocaram 46 vítimas mortais, mas a Comissão atualizou esse número para 48. Quatro dias depois de a CTI ter entregado o relatório na AR, faleceu, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, uma mulher que ficou “gravemente ferida” pelas chamas que atingiram a casa onde vivia, no município de Mortágua, elevando, assim, para 49 o total de falecimentos na sequência daqueles incêndios.
Falhou a capacidade de “previsão e programação” para “minimizar a extensão” do fogo na região Centro (onde as chamas afetaram mais de 220 mil hectares de território, cerca de 190 mil dos quais de floresta, cerca de 1.500 casas e mais de meio milhar de empresas), face às previsões meteorológicas para os dias em que ocorreram os fogos de temperaturas elevadas e vento, sublinha a Comissão.
A junção de vários fatores meteorológicos constituiu “o maior fenómeno piro-convectivo registado na Europa até ao momento e o maior do mundo em 2017, com uma média de 10 mil hectares ardidos por hora entre as 16:00 do dia 15 de outubro e as 05:00 do dia 16”, salientam os peritos, referindo que este período esteve “claramente sob a influência do vento de sul impelido pelo [furação] Ophelia”, fazendo com que as chamas tivessem sido conduzidos pelo vento.
“A piro-convecção dá-se em incêndios sem vento significativo e com a atmosfera instável”, mas também com vento, quando o fogo “consegue romper a estratificação ou dispersão que aquele impõe e cria uma coluna convectiva, alterando a meteorologia local”, esclarecem.
A Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) pediu um reforço de meios devido às condições meteorológicas, mas não obteve “plena autorização a nível superior”, e a atuação do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) foi “limitada” por falhas na rede de comunicações: “Em algumas fases das operações, não foi possível referenciar o posicionamento dos meios envolvidos em diversos teatros de operações”, destaca o relatório.
As queimadas e o fogo posto foram as duas principais causas das mais de 900 ignições registadas nestes fogos, considerando-se preocupante o número de reacendimentos.
O número total de ignições (de fogachos e de incêndios florestais e agrícolas) iniciadas nos dias 14, 15 e 16 de outubro registadas no Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais, do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, “foi de 206, 495 e 213, respetivamente”.
O panorama vivido nesses dias traduziu-se “numa situação de dramático abandono, com escassez de meios, ficando as populações entregues a si próprias”, salienta o relatório.
O documento, com 276 páginas, indica que “por momentos iniciais” foram cumpridas as determinações fixadas nas diretivas, “mas rapidamente se verificou não haver possibilidade de manter a estratégia teoricamente fixada, sobretudo devido a duas razões: dificuldade de mobilizar forças suficientes perante o número de ignições que se sucediam em áreas de grande dimensão e impossibilidade de dar uma resposta a todos os incêndios por parte dos corpos de bombeiros”.
A impossibilidade de dar uma resposta esteve relacionada com o facto de se estar em outubro e na fase Delta de combate a incêndios, em que há “uma capacidade de mobilização limitada”.
Na fase de ataque inicial, “a dispersão dos fogos, a sua velocidade de expansão e a respetiva severidade impediram muitas vezes a aplicação do conceito de triangulação, até porque os corpos de bombeiros que se tinham movimentado para teatros de operações afastados dos seus concelhos tiveram de regressar aos seus concelhos de origem de forma a garantirem o combate aos incêndios que eclodiram na sua área de atuação própria”, sustentam os especialistas da Comissão.
Os fogos de outubro revelaram também dificuldades dos municípios para lidar com “procedimentos relacionados com a emergência e o socorro, designadamente em resultado de incêndios rurais”, considerando-se ainda que o apoio das Forças Armadas no combate às chamas “ficou aquém do desejável”, sustenta ainda o documento.
Para a Comissão, os apoios públicos à floresta têm de ser reorientados e a estrutura do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas deve ter um reforço de meios, a par de uma revisão da sua estrutura, havendo ainda necessidade de mudanças estruturais e não apenas pontuais nas áreas de baixa densidade.
O despovoamento do interior é um dos problemas para a (falta de) prevenção de incêndios, com consequências devastadoras, e é necessário encontrar novos modelos de desenvolvimento das regiões abandonadas, alerta a CTI, defendendo, por outro lado, a reorientação dos apoios públicos para as florestas, a revisão da legislação sobre a limpeza de terrenos em volta das casas e o reforço da proteção das infraestruturas empresariais, entre outras questões.
Já a GNR, é referido, tem de intensificar o patrulhamento nos locais com forte concentração de ocorrências de incêndio, sobretudo durante o período crítico.
Os peritos consideram que tem de haver das autoridades “flexibilidade para ter meios de previsão e combate em qualquer época do ano” e defendem a criação de uma unidade de missão para reorganizar os bombeiros.
Os presidentes de municípios da região Centro atingidos pelos incêndios de outubro, entretanto ouvidos pela agência Lusa, revêm-se de um modo geral, por vezes com algumas reservas, no relatório da CTI.
O presidente da Câmara de Santa Comba Dão, Leonel Gouveia, que se revê “parcialmente” no relatório, considera que a existência de meios no combate inicial poderia “ter evitado as proporções” que as chamas atingiram, mas “a partir do momento em que o fogo atingiu as proporções que tomou e dadas as condições climatéricas”, o incêndio ficou “incontrolável”.
Há conclusões no relatório que “são muito evidentes e que vão ao encontro daquilo” que o presidente Câmara de Arganil, Luís Paulo Costa, tem vindo a defender, afirma o próprio, apontando para as críticas em torno do número de reacendimentos e para a ausência de reforço de meios para a época em que ocorreram os grandes de outubro.
Para o presidente da Câmara de Vouzela, Rui Ladeira, a Comissão coloca “o dedo na ferida” relativamente a problemas relacionados com o combate e a prevenção de fogos. Por outro lado, no que respeita à questão do planeamento, ordenamento e gestão do território, há “dificuldade de ajustar aquilo que se define às características de cada zona, de cada região, no quadro social, económico e biofísico do território”.
Defendendo a constituição de equipas de sapadores florestais intermunicipais, a presidente da Câmara Municipal da Marinha Grande, Cidália Ferreira, recorda que “o incêndio que veio a devastar 86% do Pinhal do Rei, ao fim dos primeiros 15 minutos já estava incontrolável por força das condições meteorológicas e dos fenómenos anormais ocorridos” naqueles dias.
“Esta tragédia não teria acontecido se tivéssemos meios aéreos na primeira hora” após a deflagração do fogo, sustenta José Carlos Alexandrino, presidente da Câmara de Oliveira do Hospital, sublinhando que “não houve resposta na primeira hora” e “todos ficaram abandonados”.
O relatório “só veio demonstrar o quanto, ao longo destes anos, de facto, o país não se soube preparar para esta possibilidade”, sustenta o presidente da Câmara de Gouveia, Luís Tadeu.
Destacando “a necessidade de políticas nacionais em matérias de proteção”, o presidente da Câmara de Tondela, José António Jesus considera que o relatório da CTI “reforça um conjunto de questões nucleares que se centram no ordenamento florestal”, com a execução de faixas de interrupção de combustível, “a par de uma gestão que assente na biodiversidade e na gestão multifuncional da floresta”.
O Governo “assume todas as responsabilidades” e “tira todas as conclusões” dos relatórios feitos pela CTI sobre os incêndios de 2017, assegurou também o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita.
O primeiro-ministro, António Costa, disse que se limita “humildemente a ler o que está escrito” no relatório da Comissão, procurando interpretar os dados e adaptá-los às políticas necessárias. “Foi assim que fizemos com o primeiro relatório” (sobre os incêndios em junho), frisou, acrescentando que o Governo já tem “cerca de três quartos das medidas que foram recomendadas em execução”, trabalho que vai prosseguir, tendo em conta os “recursos existentes e o calendário adequado para tomar cada uma das medidas”.
Comparando os dois relatórios sobre os incêndios de junho e de outubro, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, entende que o segundo “vai mais longe” do que o primeiro.
“Nas recomendações, toca pontos que no primeiro não tinham sido tocados, em áreas importantes, como, por exemplo, a estruturação dos serviços ou das instituições que lidam com a prevenção ou com o combate aos fogos. Vai mais longe, tem sugestões mais ambiciosas do que o primeiro”, afirma o chefe de Estado.
Dias antes dos fogos de outubro, a Comissão Técnica apresentou o relatório sobre os incêndios ocorridos entre 17 e 24 de junho na região Centro, em particular o que deflagrou em Pedrógão Grande, no qual morreram 66 pessoas.
O documento indicava que, apesar de o fogo de Pedrógão ter tido origem em descargas elétricas na rede de distribuição, um alerta precoce poderia ter evitado a maioria das mortes, e apontava falhas na mobilização de meios, no comando dos bombeiros e no Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP), bem como falta de conhecimento técnico no sistema de defesa florestal.
Related Images:
PUBLICIDADE