Opinião
O que é que a Venezuela tem?
O que leva a que – pelo menos ciclicamente – se concentrem na Venezuela tantos olhares políticos e mediáticos?
É por ser uma ditadura, há quem diga. Porque estão em causa os direitos humanos, apregoa-se. Mas de nações com fracos índices democráticos está o mundo cheio, como mostra o relatório da Freedom House (em que é avaliado o acesso aos direitos políticos e às liberdades civis em 210 territórios), que lista outros 66 países onde não existe liberdade, além de mais 59 onde ela é apenas parcial.
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A seletividade da atenção mundial é particularmente interessante quando falamos de casos como os da Arábia Saudita ou do Qatar, cujos esforços recentes no âmbito do ‘sportwashing’ foram desde sempre antecedidos por uma espécie de ‘perdão’ generalizado dos seus regimes autocráticos, permitindo dessa forma que sejam mantidas relações comerciais estreitas e até forjadas alianças geopolíticas.
E ainda assim, em relação a nenhum outro país foi tantas vezes invocada, no século XXI, a importância da democracia ou das eleições livres. Claro que não é possível olhar com confiança para a declaração de Nicolás Maduro como vencedor das recentes eleições na Venezuela, mas também não ajuda a acreditar nas boas intenções de quem, no lado de fora, clama por liberdade, que sejam dados como bons os 70% de votos que a oposição reclama para si, sem que existam provas também desse resultado.
A democracia, bem vistas as coisas, tem mesmo regras que devem valer para todos. A menos que a democracia não tenha nada a ver com isto… Por isso, fica a pergunta: o que é que a Venezuela tem?
Bem, desde logo, as maiores reservas de petróleo do mundo. E não é preciso ser cínico para acreditar que é o dinheiro e não a liberdade dos cidadãos a verdadeira variável que pode fazer de um qualquer país o epicentro de disputas políticas internacionais. Basta olhar para o exemplo relativamente próximo no tempo da Líbia, quando, há menos de 15 anos, a queda de Gaddafi mudou muita coisa – nomeadamente, com o setor petrolífero a abastecer desde então as principais economias ocidentais – mas não a natureza não democrática da sua forma de governo (usando este termo de forma bastante livre).
Claro que este padrão de ingerência externa é bem mais antigo. Chile, Nicarágua, Kuwait, Iraque… a lista continua e é reveladora das verdadeiras intenções de muitos supostos paladinos da liberdade. Um regime de Caracas que propagasse ideais mais próximos do capitalismo (e não vou agora questionar a distância que pode haver entre discurso e prática, embora esse seja igualmente um tema relevante neste contexto), que permitisse o acesso do Ocidente aos recursos energéticos venezuelanos, garantiria o silêncio de muitos dos que agora erguem a voz, de forma bem mais rápida e eficiente do que 50 eleições.
É, por isso, importante não perder de vista aqueles que sonham verdadeiramente com uma Venezuela democrática, que se deparam com os mesmos grilhões que tantas vezes precisam de ser quebrados por todos os que combatem pela liberdade: os que lhes foram impostos pelos ditadores, mas também os que resultam da instrumentalização da sua luta. É o tipo de vitória que parece impossível, até acontecer.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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