Opinião

O histórico

Opinião | Amadeu Araújo | Amadeu Araújo | 4 horas atrás em 05-10-2024

O histórico são os meus 53 anos de idade, que merecem discriminação negativa, depois de 37 anos de labuta. E ainda não acabou o despautério porque o corpo continua a trabalhar e a pagar taxa por existir. Já a cabeça, toldada pelos fumos e taninos, insiste em pensar, em calhando.

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O histórico, assim uma cache em modo político, é como os afetos. Estou nos afetos, diz meu filho quando sai a namorar. É puto novo, não vai pagar impostos e não assina o contrato geracional.

Ora depois de vermos as escadarias do Parlamento transformadas nos nossos Campos Elíseos, veio um senhor polícia explicar-nos, a nós, basbaques especados, que partiram “do princípio, em função do histórico, que esta também seria uma manifestação calma, mas preparados para intervir em caso de necessidade”.

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Contudo, e esta é uma república com tudo, frisou que do contingente inicial que tinha sido mobilizado na Assembleia da República, alguns meios tiveram de ser desviados para desfiles dos bombeiros sapadores que não estavam previstos, incluindo o reforço de segurança junto à sede política, no Largo do Rato.

Esta ideia de que ocupar sedes políticas é saudável, vai-nos sair cara em dia de pensar a República. Talvez efeitos do cerco à Constituinte, quando se redigiu Constituição que deu tudo a todos. Só os direitos, deveres no Estado.

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“Não estou para perder o meu tempo com Conselhos da Revolução que de revolução têm muito pouco”, disse, em 1975, o Almirante.

Constata-se assim que deixou de haver intelligentsia policial e nem a lição dos secos e molhados serviram de atualização aos cenários do histórico. Somos histórico, não se fala mais nisso.

Ou talvez convenha falar.

“Eia meu rei, quanta saudade”, no dialecto adolescente, um sussurro no ouvido do crocodilo de mandibulas escancaradas.

Modelos e ideias políticas migram rapidamente de geografias, mas as mandibulas permanecem abertas.

Entre privatizar e abater, estamos na fase do desfazer, com a torneira do dinheiro a gastar à tripa forra.

Compor, destacar e detalhar a narração desta República, planificar e planear não consta do histórico. E ele aí está para ser escarrapachado nas trombas da incompetência e da desfaçatez.

O último relatório do Fundo Monetário Internacional grita alertas relativamente à economia portuguesa.

Previsão de crescimento em baixa, o envelhecimento da população, fraco investimento e produtividade modesta. E no IRS jovem, um singelo “levanta problemas de equidade”.

Aos miúdos juntamos os residentes não habituais em Portugal e lá se vai a justiça fiscal.

Penalizado por ser velho, castigado por morar onde nasci, tratamento desigual entre contribuintes.

Neste espetáculo, a ficção decorre em vários palcos, a urdidura não tem histórico e cá estamos, estoicos e circunspectos.

É tudo irrecusável, mas os jovens terão agora 13 anos, um terço da carreira contributiva, sem pingar imposto num país que devia ter um valor mínimo de IRS. Para responsabilizar quem não paga este imposto que a máquina custa dinheiro.

Adiante, no IRC já se levantam vozes e nós bem sabemos onde acabam os lucros, em dividendos. E em certos anos de balanço mau, pede-se na banca para dar aos acionistas. É como o IVA da restauração, baixou o preço, não foi?

Os contornos deste histórico mostram amigos de longa data, reunidos na casa de campo, pouco interessados no país que ainda navega.

Em Aveiro, na Beira Litoral, os operadores fluviais dos canais urbanos da ria vão ter de usar motores elétricos nos moliceiros até ao final de 2025, para não perderem direito à licença para o uso dos cais.

Assim, impostura e mais 10 cais para exercício da atividade marítimo-turística. Que podia incluir o transporte urbano, mas, lá está, não se pensa.

Então, como o dinheiro é muito, gastem-se 600 mil euros para comprar duas casas ao “Quarteirão das Nogueiras”, e acabar, por boa vizinhança, com o tráfico de droga, num dos apeadeiros de Coimbra.

Podiam decretar tipo Aveiro: “durante o ano de 2025, os operadores têm que introduzir o motor elétrico sob pena de perderem automaticamente direito à licença”. E assim, nestas nozes, “quem for apanhado a traficar será detido, quem tiver menos de 5 gramas no bolso, é empurrado pela burocracia. OU mandar mais patrulhas. Que não. Sobram em pensos o que nos falta em cirurgias.

A cenografia desta nova produção republicana assusta-nos. Talvez falte histórico à República, neste país novecentista; por lá isto seja só espetáculo e território, uma casa em palco, como no país. Metade da casa é visível pelo espectador, a outra não existe.

Só falta trazerem a Assembleia Nacional, que por Belém solta-se o feérico abismo.

Eis um dos desafios do espetáculo orçamental que não nos resolvem.

A figura do fantasma é poderosa, o dissolvente muito, mas importa celebrar o 5 de Outubro e as crenças. Talvez nos falte a carbonária para que isto funcione. E que se registe o histórico.

OPINIÃO | AMADEU ARAÚJO – JORNALISTA

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