Opinião
O gato e a sacro-correspondência
Sacro /sa·cro/ n. 1. Venerável; sagrado.
- Que é relativo a ritos e ofícios religiosos.
- Relativo a ou osso triangular que está no fundo da coluna vertebral. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
A coisa cheirou logo a esturro. “Duas crianças tratadas com dignidade e rapidez no Serviço Nacional de Saúde? Aqui há gato”. Investigou-se. E há mesmo.
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“Apurou-se que o meu filho, Dr. Nuno Rebelo de Sousa, me enviou um e-mail”. Uma declaração estranha, esta, de Marcelo Rebelo de Sousa, proferida na passada segunda feira. Estranha não só por tratar o seu próprio filho por “Dr. Nuno Rebelo de Sousa” (“o meu Nunocas” teria soado mais sincero), mas, ainda mais estranha por Marcelo se referir ao caso com tamanha formalidade tratando-se este de um caso de flagrante informalidade.
Igualmente estranha é esta ideia de que Portugal é um país permeável à cunha e à cultura do compadrio. Eu sei, é difícil de acreditar. Também eu fiquei em choque. Favorecimentos? Em Portugal? Que brincadeira é esta?!
Estranhezas à parte, a verdade é que as notícias dão conta de que esta modalidade de cunha, instituição nunca vista, sentida ou ouvida no País — nesta altura, haverá muitos portugueses com um dicionário na mão à procura do significado da palavra “cunha” — terá atingido o Palácio de Belém.
Certo é que depois da promessa de um silêncio autoimposto — fenómeno tão raro em Marcelo como a cunha em Portugal —, o Presidente da República resolveu falar, cinco dias depois de laconicamente ter saudado a abertura do inquérito ao caso das gémeas tratadas no Hospital de Santa Maria. Mesmo não querendo perturbar os habituais
mecanismos de escrutínio, Marcelo viu-se obrigado a esclarecer o País que — ponto um — acha o favorecimento inaceitável e que — ponto dois e mais importante — trocou correspondência com o filho. O tal doutor que trouxe o gato.
O filho, Dr. Nuno Rebelo da Sousa, amigo dos progenitores das gémeas, cujos interesses, aliás, representava, viu o seu pedido reencaminhado para a assessora dos Assuntos Sociais do Presidência da República, Maria João Ruela, a Mrs. Hudson de Belém Street, e para o chefe da sua Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, uma espécie de Alfred que lê o correio, trata da lide doméstica do Palácio e estaciona o Batmobile.
Em resumo, um cidadão anónimo moveu esforços por outro cidadão anónimo. Se produziu efeitos, ainda bem. Talvez o mesmo esforço e dedicação possam ser replicados pela concorrência das gémeas recordistas. Isto é, as outras crianças que precisem da mesma disponibilidade de recursos do Serviço Nacional de Saúde. Com persistência e algum suor, os pais dessas crianças também podem arranjar o número de telefone do Presidente da República.
Marcelo garante que não moveu esforços, nem um dedo. Parece que o seu filho terá movido dois ou três. Pelo menos, enquanto escrevia os polémicos e-mails. Sabemos, assim, que foram movidos alguns dedos e meia dúzia de esforços, com suficiente insistência para que se tenha produzido este extraordinário paradoxo: duas gémeas brasileiras obtiveram cidadania portuguesa em tempo recorde e, por isso, beneficiaram de uma qualidade de cuidados de saúde que é inacessível aos cidadãos portugueses.
Uma ironia que poderá irritar alguns progenitores da dita concorrência, mas que não deixa de ser merecedora do nosso fascínio e curiosidade.
Não sei se efetivamente houve algum favorecimento, mas, se tiver havido, este é o tipo de favorecimento que facilmente se perdoa. Primeiro porque, de acordo com a CNN Portugal, o pai das duas gémeas, Samir Assad Filho, deve 372 milhões de reais ao fisco brasileiro — gente pobre, portanto, devedora, que claramente precisa de apoio social. Segundo porque, de acordo com o Livro do Génesis, o favorecimento é cristão. E Marcelo, como sabemos, ama Jesus Cristo. O homem só quis ajudar. Pois se o próprio
Abraão favoreceu Isaac entre o séquito de descendentes que produziu, não pode Marcelo favorecer duas gémeas entre 200 milhões de brasileiros que nem conhece?
No seu coração já cabiam Jesus Cristo e o Sporting. O de Braga. Agora, auxiliado (alegadamente) pela generosidade cristã do Governo e do Ministério da Saúde, o Presidente da República conseguiu acomodar duas pequenas gémeas no recato fraterno que mora dentro do seu peito. Talvez não seja legítimo pedir-lhe que arranje lugar para todos os portugueses que esperam por cirurgias e tratamentos ou mesmo para os muitos que têm batido com o nariz na porta das urgências fechadas. Não há sistema cardiovascular que aguente tamanha ocupação e, como o próprio lembrou ao País, Marcelo tem um coração frágil.
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