Economia
Mulheres trans assediadas, discriminadas ou vistas como objetos sexuais no trabalho
O maior orgulho de Daniela foi assumir-se como pessoa trans no local de trabalho, mas depois foi assediada e demitiu-se, enquanto Kiki, empresária, revela que muitos veem a mulher trans como objeto sexual.
Daniela Bento recorda que quando revelou a sua identidade de género na empresa onde trabalhava há três anos, a consequência foi assédio e desvalorização.
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“Decidi fazer o meu processo dentro da empresa, parecia um trabalho estável, mas o que aconteceu foi (…) muita pressão sobre a maneira como eu me comportava, como me vestia, como eu estava; colegas a perguntarem-me sobre o meu corpo e a querem mexer no meu corpo. Um assédio brutal e uma violência extrema”, contou, em entrevista à Lusa.
Como “a dificuldade em encontrar trabalho por pessoas trans é tão grande” e Daniela receava não conseguir encontrar outro emprego, aguentou mais um ano.
“Mas depois começou a ser doloroso e no fim acabei por me demitir”.
Ativista e coordenadora do GRIT – Grupo de Reflexão e Intervenção Trans, da associação ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) Portugal, Daniela aponta que o acesso ao trabalho, e sobretudo a um trabalho digno, é uma das principais dificuldades das pessoas trans, a par com o acesso a educação e saúde dignas.
Apesar de não haver dados concretos para Portugal, Daniela estima que a taxa de discriminação das pessoas trans no acesso ao trabalho andará à volta dos 40%.
Logo na entrevista de recrutamento, “quando a pessoa do outro lado percebe que [o candidato] é uma pessoa trans”, aumenta a probabilidade de não ser contratado, diz Daniela.
Mesmo depois de arranjar emprego, as dificuldades continuam: faltam mecanismos que garantam um ambiente de trabalho seguro, onde não sejam alvo de gozo ou abuso.
Segundo Daniela, muitas pessoas escondem a sua identidade trans porque não querem sofrer represálias: “É um processo que é difícil para fazer com a própria família, quanto mais para fazer no emprego”, onde há dependência financeira.
Outras pessoas optam por se despedir quando iniciam o processo de mudança de género e só voltam ao mercado de trabalho quando já têm o nome e o corpo mudados.
Daniela acrescenta que, dentro da comunidade trans, as mulheres são ainda mais discriminadas do que os homens e a dificuldade aumenta quanto mais fatores de discriminação forem adicionados, nomeadamente se além de mulher, a pessoa trans for negra ou imigrante.
Facilmente as pessoas trans “entram numa espiral”, refere Daniela, já que sem documentação não arranjam trabalho, sem trabalho não conseguem pagar uma casa, e a vulnerabilidade aumenta a cada dificuldade adicionada.
“A pessoa acaba muitas vezes por ter de fazer trabalho sexual (…) para conseguir sobreviver. E isto é de facto muito violento”, alerta.
Para a empresária Alexandra Pais de Sousa (Kiki), o local de trabalho é uma das áreas em que há mais discriminação, seja “porque não contratam pessoas trans ou porque colocam inúmeros entraves ao seu processo de afirmação no local de trabalho”.
Com apenas 18 anos, Kiki trabalhou como manequim masculino em Portugal e no estrangeiro, quando a realidade das passereles nacionais dos anos de 1980 se fazia à conta de uma única agência de modelos.
Recorda que quando regressou a Portugal, estudou, formou-se e estagiou, mas viveu “quase dois anos muito traumáticos”: “Não fui levado a sério, eram bocas constantes por ser manequim, a chefia era horrível”.
Posteriormente, aventurou-se pela área da cosmetologia e em 2010 arrancou com o negócio que mantém até hoje, uma “sauna liberal mista”, para pessoas de qualquer identidade de género ou orientação sexual.
Kiki diz ter problemas com alguns clientes, sobretudo estrangeiros, quando sabem que a proprietária do espaço é uma mulher trans: “As pessoas pensam que [a pessoa trans] está disponível para tudo e mais um pouco”.
Para evitar essas situações, não está no atendimento ao público, mas ainda assim muitos clientes querem conhecer a proprietária.
“Depois começam com perguntas se faz, se não faz…”, o que revela como a mulher trans é transformada “num objeto para satisfação sexual”.
Ativista e membro da direção da Associação Variações – Associação de Comércio e Turismo LGBTI de Portugal, Kiki defende que falta reconhecimento das necessidades das pessoas trans, seja no trabalho, na saúde ou na educação, salientando que “os processos de afirmação as colocam muitas vezes em situações de enorme vulnerabilidade”.
Destaca a alteração legislativa de 2018, que estabeleceu o direito à autodeterminação da identidade de género, como “uma enorme conquista”, mas aponta que fez também “ressurgir a transfobia social” por causa da desinformação e da confusão em relação ao que se fala quando está em causa o direito à identidade de género.
Daniela Bento alerta que não podem ser só as pessoas trans a trabalhar para mudar o sistema, mas sim toda a sociedade a exigir uma mudança estrutural.
Sublinha que as pessoas trans têm direito a ser visíveis, para que as suas vidas não sejam só associadas a sofrimento e dificuldades, mas também a conquistas, dando-lhes espaço público para que possam falar disso sem serem duplamente vitimizadas.
Para si, a maior conquista foi assumir-se como pessoa trans na empresa, ainda que “tenha sofrido”: “Poder afirmar que sou esta pessoa e ter orgulho na minha identidade enquanto pessoa trans é fenomenal”.
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