Opinião
Masoquismo cardiovascular
Ontem celebrou-se o Dia dos Namorados. O dia em que sucumbimos à inebriação coletiva, quando o amor é superlativo e o julgamos capaz de curar doenças, parar guerras e acabar com todos os males do mundo.
Hoje, passada a bebedeira, lembramo-nos que não é assim. Somos recordados de que, ao contrário do que nos diz John Lennon, é preciso mais do que amor para sobreviver à vida.
Ainda que reconheça a liberdade poética da canção e aprecie o espírito pacifista do autor, é seguro afirmar que o Beatle estava errado. Se soubesse o que o futuro lhe reservava, talvez John Lennon cantasse “Tudo o que precisamos é de um colete à prova de bala”. Porém, desconhecendo o seu próprio destino, preferiu eternizar o mantra “All we need is love”.
Agora, à distância, sabemos que o love não é suficiente para salvar a nossa life. O love é pujante, intenso, e até fatal, mas, à data, ainda não consegue proteger-nos dos malefícios dos revólveres e das outras guns.
Na verdade, o amor é bem mais violento do que gostamos de admitir. Por vezes, mais violento do que as balas. Pode inspirar poemas extraordinários e músicas melancólicas, mas o seu potencial de destruição é incomparavelmente mais poderoso do que a felicidade passageira que transporta.
Vejamos: não é ele que nos dá a conhecer o aperto no peito? O suor nas mãos? A gaguez na voz? O terror da antecipação da perda e a amplificação dos nossos complexos? Não é ele quem transforma o nosso sistema nervoso — até então sereno e imperturbável — num organismo histérico e aleatório? Não é ele que nos revela areias movediças sentimentais em que cada passo está condicionado ao medo de ser sugado para o subsolo?
Entretanto, cá em cima, o Dia dos Namorados não fala dos subsolos e o amor só promete sol. Sol, luz e risos genuínos, com a pretensão de quem se julga o elixir redentor de todas as noites e de todas as balas.
Mas não. O amor não nos salva da noite, nem tão pouco das balas — que o diga John Lennon. O amor é perigoso, é causa de crimes passionais e motor de sofrimentos inimagináveis. O amor não só mata como mói.
E, mesmo sabendo-o, cá continuamos nós… a suspirar por ele, a rezar por ele, a desejá-lo desesperadamente, mais do que desejamos dinheiro ou sucesso. A procurá-lo com a sofreguidão de quem tenta escapar à sede, enquanto fantasiamos com um afogamento recheado de beijos, abraços e mimos.
Embriagados neste delírio, evitamos as perguntas lógicas: se somos mais magoados por quem amamos do que por quem desprezamos, não deveríamos nós — seres racionais — deixar de amar? Ou, pelo menos, deixar de celebrar o amor? Não seria prudente deixar os braços de quem nos ama e beijar quem nos odeia, a gente sem engenho para magoar a sério?
Pensando bem, talvez não fosse… Assumindo que o beijo ao inimigo é, por si, um ato de amor — e dos grandes, aliás —, voltaríamos à estaca zero: presos ao amor que aleija e afastados do ódio indolor.
O melhor é deixar de tentar compreender este paradoxo, este universo injusto e contraditório em que o amor de John Lennon gerou o ódio a Yoko Ono, em que a paixão pelo Anel levou o Gollum à loucura, e em que dois dias de romance tórrido ceifaram a vida do pobre Jack Dawson. Porventura, será menos doloroso entender o amor como uma espécie de pescadinha de rabo na boca, que é saborosa, mas carrega muitas espinhas. Aceitá-lo como um inescapável masoquismo cardiovascular que nos permite dançar com o medo e chutar a dor para o canto da pista. Pontapeá-la com todo o nosso amor, na esperança de que ela não se venha misturar com aquele sentimento de que todos precisamos. Aquele das borboletas no sistema digestivo. Aquele “bem piroso e lamechas como o amor deve ser”.
OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA
Escreve à quinta-feira
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