Opinião
Lixem-se!
Ontem, quando separava o lixo e me entretinha a rasgar cartão para caber no molok e lembrava a véspera ao ouvir cair as botelhas no caldeirão, lembrei-me da minha Tia Autora. O lixo é negócio de tostões que dá milhões e a minha Tia, que eu adorava porque quando chegava a casa dela havia sempre chocolates da Imperial e laranjadas da Sumol, construiu um cash and carry a partir de uma pequena mercearia. Os tostões deram tanto que o cash anda carry passou a cadeia, cresceu em unidades e estendeu-se de Norte a Sul. A marca ainda hoje existe, e fatura bem, já minha Tia partiu, mas bem me lembro do vozeirão, enquanto ele brunia e discutíamos política. Eu, filho de emigrante tornado metalúrgico com salários pela metade enquanto o patrão passeava o Sierra e mãe telefonista a fazer turnos enquanto criava três filhos e cuidava da minha avó doente, arregalava os olhos. Arreigada, cristã e ferrenha admiradora da direita mais extrema, comentava com meu Tio quando este me levava, no Corolla, às Terras de Basto para pescar trutas no Cavez. Ou talvez no Tâmega.
A conversa ia sempre pelo valor do trabalho e a impostura de uma vida dura para dar frutos. Dizia minha Tia que o punho fechado não dava nada a ninguém e só as setas e a bola, da democracia social, podiam valer. Aquilo eram terras de corte e costura, teares a matraquear de manhã à noite, vidas suadas, cansadas e gastas.
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E eu, ali, a ruminar memórias e a pensar na razão dos municípios da Região de Coimbra que ponderam deixar de pagar resíduos à Empresa de Resíduos Sólidos Urbanos de Coimbra. Empresa criada em 1993, a ERSUC recebeu capital privado em 2014 e lá se foi a autonomia.
No concelho onde vivo o negócio vale 6,5 milhões de euros, as famílias pagam 2,5 milhões e o Estado cobra taxas. Mas os resíduos são reciclados e transformam-se em dinheiro.
É provável que as tarifas venham a aumentar 25%, refletidas nas faturas da água das famílias e empresas.
Na ERSUC e segundo os relatos da última assembleia-geral, quiseram distribuir 2 milhões de euros de dividendos pelos acionistas. Câmaras e um grupo económico que pagou 149 milhões de euros para comprar empresas do lixo, que eram detidas pelas autarquias e Águas de Portugal. Em 2017 o grupo pagou os últimos 135 milhões e assim ficámos, uma Nápoles portuguesa.
Ora as autarquias ainda são acionistas, mas são também os clientes que sustentam o negócio: uma empresa fortemente endividada e a suportar custos financeiros que em 2023 atingiram os 2,5 milhões de euros.
Ora quando há dívida, distribuir dividendos é querer pagar o negócio com o pêlo do cão. Preocupados com a situação e os custos das tarifas, que serão aumentados, percebem-se os perigos. E as oportunidades. Como recuperar o serviço, pedir auditorias, defender o povo que, no fundo, era o que me separava da minha Tia, que ergueu vida justa e sempre foi amiga dos sobrinhos. A política, a casa comum, não a vida dura, mas os negócios antes das pessoas.
Enquanto isso, os cidadãos distraídos, trocam informação pelo entretenimento e nem se dão conta que temos agora novos Governo e Parlamento, onde se senta, no cadeirão do acólito, o homem do Movimento Democrático para a Libertação de Portugal. Como haverá de estar feliz o Camilo, que assaltava bancos. Um progressista que me fez lembrar outros tempos, como quando ardeu a sede dos comunistas cá na terra. Ou a morte do Padre Max, tempos em que Madrid era refúgio seguro e como nunca apagámos as desonras desse Verão Quente. Que agora nos bate à porta, com novos negócios, mais privatizações e o povo que se lixe.
Hoje, passados cinquenta anos de Abril, com as câmaras a pagarem as obras do Estado, como aconteceu no Vouga – onde foram gastos 603 mil euros no resgate de uma ponte com inauguração abençoada pelo padre de serviço que a República é laica, ver este frenesim, esta sede de ajuste de contas, perturba-me. Não me incomoda, mas perturba-me. Parece que não é só fumaça e que o incêndio já começou. Bravo.
Ainda assim espero que os municípios, a fazerem lembrar o “Grupo da Cidadela”, formado na Universidade de Coimbra pouco depois da Revolução, se mantenham firmes.
Os cidadãos têm de defender o que lhes interessa. Sem tutelas, nem ameaças. Pois como lembrou um conhecido vice-presidente do Parlamento, “as coisas vão mudando, há alterações que vamos fazendo, mas mantendo essencialmente o mesmo”.
E mais do mesmo não quero. Não contem comigo para “sacrificar novilhos em altar” alheio.
OPINIÃO | AMADEU ARAÚJO – JORNALISTA
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