O antigo primeiro-ministro José Sócrates critica a recusa do PS em fazer um acordo escrito de legislatura com o Bloco de Esquerda, considerando que revela “uma visão meramente utilitária” e que pode gerar “ressentimento” à esquerda.
Esta posição do antigo líder do PS entre 2004 e 2011 consta de um artigo hoje publicado na revista brasileira Carta Capital, intitulado “A Geringonça”, no qual considera que esta solução política da esquerda portuguesa “ganhou as eleições” legislativas de 06 de outubro passado, mas “acabou” no dia seguinte.
“Na verdade, esta situação é muito parecida à que se viveu em Espanha e que foi muito referida na campanha eleitoral portuguesa. Também ali os socialistas espanhóis recusaram fazer uma coligação de governo com o partido Podemos”, compara.
Segundo José Sócrates, “a acreditar na sinceridade das declarações oficiais”, a ‘geringonça’ “não acabou definitivamente”, porque “os três partidos que a compunham – o socialista, o Bloco de Esquerda e o comunista – continuam a afirmar a intenção de cooperar e dialogar em torno de propostas concretas que serão analisadas caso a caso”.
“No entanto, o aspeto mais relevante do anterior cenário – um acordo parlamentar que garantiu a estabilidade política durante os quatro anos de legislatura – terminou. Se isso significa que a solução política está definitivamente enterrada é ainda matéria de especulação. Mas podemos dizer com segurança que nada será como dantes”, sustenta José Sócrates.
O antigo líder socialista começa por referir que o PCP “foi o primeiro a manifestar a intenção de não fazer qualquer acordo prévio” com o PS, observando que isso acontece num contexto em que “os ganhos políticos foram distribuídos assimetricamente” entre as três forças que compunham a solução política de esquerda.
“Ao contrário dos outros parceiros, os comunistas perderam votos e deputados e querem agora ter as mãos livres. Aceitemos. Todavia, o que determinou o desenlace não foi esse facto, mas a recusa do PS em fazer um acordo programático com o Bloco de Esquerda, cuja soma de deputados é suficiente para garantir a maioria parlamentar. Esta foi a decisão que provocou a rutura – acabou a geringonça”, afirma o antigo primeiro-ministro.
José Sócrates classifica depois esta “escolha” do PS como “surpreendente, como surpreendente é, igualmente, o argumento usado para a justificar”.
“Dizem os socialistas que preferem continuar a negociar medida a medida com todos os outros partidos de esquerda, entre os quais o PCP, para não criar uma hierarquia entre eles. O argumento, pura e simplesmente, não faz sentido. Essa hierarquia existe de facto e foi criada pelos únicos que a podem criar – os eleitores portugueses. Foi o povo e mais ninguém que deu ao Bloco de Esquerda a posição de terceira força política, capaz de fazer com os socialistas maioria absoluta no parlamento (cerca de 127 deputados num parlamento com 230)”, argumenta.
Mas o antigo líder do PS vai ainda mais longe na sua análise, advertindo que “ninguém está a dar nada ao Bloco de Esquerda que este partido não tenha conquistado” e que “mal vai a política que não reconhece as realidades eleitorais”.
No seu artigo, José Sócrates faz alusões à política italiana do período da Guerra Fria, em que os comunistas estavam excluídos de qualquer acordo que incluísse a sua presença em cargos governamentais, para depois defender que em Portugal a experiência parlamentar da última legislatura mostrou que “esse preconceito político teve o seu tempo e que nada o justifica agora”.
“Quebrou-se um muro, diziam orgulhosos os socialistas. Sim, quebrou-se um muro, mas ficamos agora a saber que era apenas metade do muro. O resto ficou”, aponta.
De acordo com o antigo secretário-geral do PS, “a recusa em estabelecer um acordo de legislatura com o Bloco de Esquerda parece assim evidenciar uma visão meramente utilitária: o Bloco de Esquerda serviu na altura para apoiar os socialistas em alturas de aflição (quando o PS perde e a direita não tem maioria), mas não serve agora para momentos de normalidade (em que o PS ganha, embora sem maioria absoluta no parlamento)” e “o que deveria ficar registado como um gesto de grandeza e densidade histórica ficará assim reduzido a um expediente instrumental de sobrevivência política”.
Para o antigo primeiro-ministro, “a popularidade da solução geringonça é ainda tão forte nos respetivos eleitorados que nenhum dos partidos quis assumir a responsabilidade pelo seu fim”.
“Começou a fase de apontar culpas e esta fase não é bonita. Uma das mais importantes mudanças políticas que a geringonça permitiu foi trazer esses partidos para o denominado arco da governação, introduzindo-os nas dificuldades das responsabilidades executivas e na dura realidade da política que nem sempre representa uma clara escolha entre o bem e o mal, consistindo, muitas vezes, na escolha do mal menor. Esse é o fracasso que resta”, advoga, antes de deixar um aviso sobre as consequências da opção tomada pelo PS.
“Oxalá me engane, mas o que podemos esperar é o crescimento do ressentimento. E o ressentimento é uma poderosa força política”, escreve José Sócrates neste seu artigo na revista brasileira “Carta Capital”.