Opinião
Jesus não entra (ou um conto de Natal)
Imaginem o seguinte: um indivíduo nascido na Palestina, que passou grande parte da sua vida no norte de Israel, pertencente a um grupo étnico que historicamente teve de enfrentar a opressão política e económica, frequentemente marginalizado pelos poderes vigentes, procura uma vida melhor e, em vez de se dirigir para uma Jerusalém foco de tensões permanentes entre palestinianos e israelitas, viaja para Portugal e aterra em Lisboa. Imigrante ou refugiado, as hipóteses de permanência no nosso país deste ser humano de pele morena e cabelos escuros, vindo de um contexto cultural profundamente diferente do nosso e sem contrato de trabalho assegurado, dependem exclusivamente da recetividade e vontade de acolhimento que aqui encontrará.
Coloca-se, por isso, a pergunta: em 2024, o que estaria reservado para este cidadão? Não tenhamos dúvidas, esperava-o um país dominado por correntes que mascaram xenofobia de ideais patrióticos e nos querem convencer de que o humanismo é fraqueza e que deve, por isso, ser preterido por um conceito difuso de proximidade cultural e pelo utilitarismo económico.
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Desde logo, não encaixaria no perfil de «origem cultural semelhante à portuguesa», um critério que reflete preconceitos relacionados com etnia, religião ou estilo de vida. A sua diversidade – pilar de uma sociedade verdadeiramente livre e que os portugueses muito deveriam valorizar, tanto pela que levaram a outros países, quanto pela que, vinda de fora, muito tem enriquecido a nossa vida coletiva – faria com que fosse ‘riscado’ pelos muitos que professam um discurso que privilegia uma ilusória homogeneidade cultural.
Depois, a sua aparência física também não lhe facilitaria a vida. Os traços semitas, além das roupas por si envergadas, denunciando a inexistência de posses monetárias significativas, seriam uma garantia suficiente de que as forças policiais o mandariam encostar a uma qualquer parede: bastava, para isso, que calhasse estar a passar no Martim Moniz.
O facto de ser um trabalhador não qualificado dar-lhe-ia alguma luz de esperança, se uma qualquer ‘generosa’ empresa de construção civil lhe oferecesse um contrato. Nem interessa por que valores, que o país com que o Plano de Recuperação e Resiliência nos permite sonhar não se constrói sozinho! Seria, ainda assim, uma permanência precária, porque as obras terão de terminar mais cedo ou mais tarde e, quando os estrangeiros deixam de ter préstimo para o capitalismo, este não hesita em regurgitá-los com ainda mais violência do que lhe é habitual – para mais, tratando-se de alguém com pretensões a messias com uma mensagem de transformação da sociedade no sentido da igualdade!
Ironicamente, a figura de outro refugiado – nascido há dois mil anos, numa época em que os imigrantes também enfrentavam grandes obstáculos para serem acolhidos, mesmo quando as suas vidas estavam em risco – é amplamente celebrada no nosso país, em resultado das raízes católicas do povo português, e em particular nesta época do ano. Ainda mais ironicamente, uma corrente ideológica que se torna perigosamente dominante tem a prática paradoxal de invocar o seu exemplo e de defender o oposto de valores por si personificados, como a solidariedade e a empatia.
É urgente refletir sobre o tipo de sociedade que queremos construir: uma que se feche em si mesma ou uma que reconheça a riqueza da diferença e acolha o outro como igual. Jesus Cristo, à luz da sua história e dos princípios que pregava, certamente indicaria o segundo caminho.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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