Opinião
Inquietações
Foi a 23 de fevereiro que JP Simões lançou um disco só com canções de José Mário Branco. Eventualmente por mero sortilégio do calendário, esse era também o dia em que passavam 37 anos da morte de José Afonso. Ou, como escreveu o também indispensável Sérgio Godinho, isto anda tudo ligado.
“JP Simões canta José Mário Branco” é um pequeno disco, oito faixas apenas, mas feito de grandes canções e grandes interpretações. Um disco tão belo e tão importante que quase parece fora do nosso tempo, de intemporal que é, de deslocado que soa na vertigem individualista destes dias. E, por isso mesmo, tão necessário agora.
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Desde logo, pelas palavras que nos faz voltar a descobrir. Como ouvir cantar «No lugar da consciência / A lei da concorrência / Pisando tudo pelo caminho / Para castrar a juventude / Mascaram de virtude / O querer vencer sozinho» sem questionar onde teremos perdido, enquanto sociedade, a noção de comunidade com que Abril nos permitiu sonhar? Como, apesar dos discursos sobre mitificadas contas certas, ignorar o repto «Alguém que acorde esse país / Que pegue fogo aos alibis / De quem acha que o dinheiro / Se gasta primeiro / Que o amor»? Como escutar o lamento de 1982 «Sopram ventos adversos / Junto à praia que se quis / E há sentimentos dispersos / Que são barcos submersos / No mar do que não se diz» e não pensar nos ventos populistas que ameaçam varrer-nos em 2024?
Depois, coexistem na voz de JP Simões as doses certas de respeito e transgressão, que o intérprete original não haveria de gostar de reverências. Por vezes, a aproximação é de tal forma que questionamos estar a ouvir o próprio cantor nascido no Porto e nos vem à memória o verso biográfico do incontornável “FMI”: estará Zé Mário muito mais vivo que morto? Certamente. Não deixa nunca de haver, porém, JP Simões em cada segundo de cada canção. Ele, que já havia sido capaz de transpor magistralmente a “Inquietação” de José Mário Branco para a sua linguagem, volta a cruzar a geração que protagonizou o 25 de Abril com a sua própria, essa tal que «Já se calou, já se perdeu, já amuou, já se cansou, desapareceu, ou então casou, ou então mudou, ou então morreu».
Às palavras cantadas e às palavras ‘recantadas’, percorre-as uma espécie de espessura, de tensão, de seriedade. Nas versões que já conhecíamos e nas que agora JP Simões nos apresenta, sente-se o mesmo posicionamento ético, a mesma urgência de resistir. E um desapontamento esperançoso, se isso faz sentido, que não nos deixa ficar sossegados – quando se invoca a importância de sair da zona de conforto, era deste tipo de desassossego que se devia falar.
P.S. Para primeiro single deste disco, JP Simões escolheu a lindíssima “Mariazinha” e para o respetivo vídeo o realizador António Ferreira. E isso faz de “JP Simões canta José Mário Branco” também, à sua maneira, um disco sobre Coimbra, onde nasceram o cantor e o cineasta. Sobre aquela Coimbra que – ao arrepio dos postais que, por alguma razão, a Cidade não se importa de tentar vender sobre si mesma – não se conforma em ser de acordo com as expetativas. A Coimbra Inquieta.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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