Coimbra
Historiador de Coimbra diz que há um défice de reflexão crítica à Esquerda e à Direita sobre o passado
O historiador Miguel Cardina afirmou que há “um défice, à Esquerda e à Direita, de reflexão crítica”, do que “foi a experiência colonial, e sobre o modo como, hoje, Portugal deve lidar com esse passado”.
PUBLICIDADE
O presidente do Conselho Científico do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra falava à agência Lusa, sobre a memória que a sociedade portuguesa tem do período colonial e dos 500 anos da presença portuguesa noutras latitudes, uma temática, advertiu, “complexa”, pois a “memória nunca é total nem pura” e há “memórias desencontradas”.
Para o investigador, “há uma leitura, em setores dominantes da sociedade e em alguns setores do Estado, que tende a ser amnésica, preferindo expressões que acentuam uma dimensão positiva daquilo que foi a experiência colonial, e tendem a esquecer o reverso, que foi justamente a dimensão profundamente desigual, violenta e hierárquica imposta pelo colonizador, aos povos colonizados”.
E, a este nível, afirma, “nem sempre a Esquerda e a Direita se distinguem”.
A questão colonial é “um dado que está ausente do espaço público em Portugal, apesar de haver trabalho académico”, realçou o investigador à Lusa, segundo o qual “há uma consciência crítica desse passado, quer através da academia, com a produção de vários trabalhos, quer da parte de movimentos e associações de afrodescendentes, e de movimentos sociais”.
Todavia, “permanecem bolsas muito significativas e dominantes, de influência, daquilo que foi o ‘discurso lusotropicalista’, a ideia de que Portugal produziu um colonialismo pouco ou nada violento, baseado na miscigenação, no encontro de culturas, de que, no fundo, produzimos um modo de relacionamento afável com os povos que colonizámos”.
“Esta é uma imagem que persiste e tem que ser reavaliada em termos do conhecimento histórico, pois é uma imagem seletiva”, afirma Miguel Cardina.
No plano político, o historiador considerou que “nem sempre a Esquerda e a Direita se distinguem a este nível”, embora “havendo nos setores mais à Esquerda uma consciência e um olhar crítico sobre o colonialismo, que não há em certos setores da Direita, por razões históricas e ideológicos”, tendo em conta o que foram “os poderes dominantes em Portugal, as governações um bocadinho mais Esquerda, [ou] um bocadinho mais à Direita”.
“Se olharmos a História do Portugal democrático e pós-colonial, apesar de haver diferenças ideológicas claras, entre a Esquerda e a Direita, e essa diferença ser notória na forma como olham os passados coloniais (…), a verdade é que [ambas] foram sempre confluindo num certo olhar sobre o passado colonial – que não é que o defendessem como tal -, mas [em que] se trata de não reconhecer as dimensões violentas do encontro colonial”, o que “é mais evidente à Direita”.
Para Miguel Cardina, esta questão torna-se “muito evidente quando se olha para os discursos políticos, como os proferidos por ocasião” de celebrações como o 25 de Abril e do 10 de junho.
“Há ainda um défice, à Esquerda e à Direita, mais evidente à Direita, mas também evidente à Esquerda, de reflexão crítica daquilo que foi a experiência colonial, e sobre o modo como, hoje, Portugal deve lidar com esse passado”, afirmou.
O investigador aponta a questão como “essencial”, pois “o passado está presente no dia-a-dia”, na atualidade.
“Nós não podemos compreender o racismo em Portugal se não tivermos em conta a forma como Portugal, ainda hoje, desconsidera o facto de ter sido a maior potência esclavagista da modernidade”, disse.
Miguel Cardina, que coordenou com Bruno Sena Martins, a obra “As Voltas do Passado. A guerra colonial e as lutas de libertação”, publicado em junho último (Tinta-da-China), realçou que “a guerra colonial é um evento decisivo na história do século XX português, um acontecimento que se liga diretamente com a queda da ditadura do Estado Novo, cria condições para o 25 de Abril e reconfigura o lugar de Portugal na Europa e no mundo”.
A partir da guerra colonial (1961 a 1974), há um conjunto de Nações que se tornaram Estados e ganharam a sua independência ou autonomia, disse.
“A memória da guerra, dos que participaram nela, e da sociedade, pois mobilizou pais, irmãos, namoradas, familiares, é um evento muito particular, porque produziu memórias desencontradas”, disse Miguel Cardina à Lusa, destacando que as memórias “dos povos que lutaram pela sua libertação são outras”, e que, até perto da entrada no novo século, há memórias que “foram praticamente silenciadas ou que apenas correram no espaço íntimo”.
No espaço social e até no político, “a violência colonial tende a parecer como mitigada”, defende o coordenador do projeto de investigação “CROME — Memórias Cruzadas e Políticas do Silêncio. As Guerras Coloniais e de Libertação em Tempos Pós‑coloniais”.
“Vê-se a guerra como guerra e não como fruto de um sistema colonial”, afirmou, referindo que há uma “memória amnésica” sobre o passado.
“A memória amnésica é feita de silenciamentos, mas, no caso português, tende a ser uma memória que seleciona e engrandece uma determinada leitura daquilo que os chamados processos dos descobrimentos, da colonização, da relação com os outros povos, do encontro de culturas, tudo expressões que têm uma carga muito própria, adjetivam positivamente, o que foi o processo da colonização, e essa é a memória dominante”.
O reverso desta memória, alertou, “é o esquecimento de que esse processo [colonial] foi feito de dominação, de violência, de hierarquia, de imposição, que é uma parte importante daquilo que é a experiência colonial” portuguesa.
Para o investigador, quanto à questão colonial, só “há cerca de um ano” se iniciou um debate no espaço público, em particular desde que se edificou a estátua ao padre ao António Vieira, em Lisboa, e que se tem discutido um suposto Museu dos Descobrimentos.
Related Images:
PUBLICIDADE