Opinião
“Fechar contas”
Numa destas manhãs, enquanto passeava pelas ruas do bairro, contemplava as betoneiras, ainda não eram oito da manhã e já construíam futuro. E eu, entretido com o cigarro vermelho que substituiu o amarelo, que deixaram de produzir, pensava que tudo finda. Até o meu amigo Mendes, companheiro de três décadas de queijos, vinhos e ervas verdes, tudo acompanhado de boa música, trance. Muitas batidas para abanar o Caramulo, música feita por miúdos que hoje ganham milhares de euros por uma hora a lavar pratos, perdão ficheiros e eu com o meu Amigo, morto em França e cujas cinzas vão hoje a repousar.
E nisto, o telefonema de mulher que criou três filhos, todos licenciados, a dizer-me que ainda nem o corpo tinha arrefecido, já lhe perguntavam da empresa se podiam “fechar contas”. O cinismo destes tempos não deixa de me espantar. A perplexidade de quem vê uma corporação, sim, das grandes, preocupada com o arremedo dos trocos, ao invés do capital humano.
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E nisto lembrei-me do homem de 77 anos que morreu na giratória com que esgadanhava a terra, em Alvaiázere, terra que muito prezo.
Somos nada, mas a forma como tratamos quem trabalha, a forma estuporizada e cheia de monetarismos como olhamos ao emprego e a ineficácia dos organismos oficiais, esta inação que permite todas as arbitrariedades, inquieta-me.
E entre assombros, vamos conhecendo os que vão ocupar as cadeiras no Largo das Cortes, mas, estranhamente, não conhecemos as propostas. O programa eleitoral. Primeiro a sinecura, depois logo se vê. E assim anda este país, a romper e a rasgar, sem bússola, nem um velho sextante. À deriva.
E assim pego naquela mota recuperada em Leiria e abalo, comovido com as valências policiais, investigação criminal, intervenção rápida e serviço de patrulha. O patrulheiro que há décadas deixou a rua, mas é de motociclo que recordo os Estaleiros Navais do Mondego, onde fabricaram o Cunene, o patrulha 1141 da Armada, onde servi meses, a fiscalizar pescadores, de sardinha, atum e espada. E reparo nessa entrevista de Gouveia e Melo, o maior da Armada, que me deu formação e que tem pensamento estratégico. E que fala numa nova geração de navios, da preponderância de vigiar o mar, com “patrulhas de média dimensão e desenho muito próprio”, concebido pela Armada. E que podem ser exportados. Talvez por isso queiram politizar o submarinista. Visão estratégica, eis o que falta a este país.
Veja-se o “ano de todas as lutas dos médicos” e o aviso do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra para que o povo, essa horda de indigentes, utilize a Linha Saúde 24 antes de recorrer aos serviços de urgência. É o que eu costumo fazer, mas chegado às urgências, quando o aconselham, a burocracia é tanta e a recusa em aceitar uma triagem já feita acrescenta mais trabalho. É assim, temos a máquina, porém falta óleo na engrenagem. E almofada na cadeira.
Como os helicópteros do INEM, dois deles em terra, porque não acautelámos em tempo útil a contratação. E para quê helicópteros no INEM e na Proteção Civil? Até 2001, as máquinas voadoras faziam os dois trabalhos. Mas gostamos da quinta, das vozes bravas, “mais uma greve e vamos para a insolvência”, a bravata da superioridade, a quem nada falta, contra os de baixo, que não só não ascendem pelo mérito, como nem o escasso soldo recebem. “Posso fechar as contas”, é este o triste destino pátrio.
E nisto, listas feitas, faltam programas, sociedades unipessoais, que não acrescentam, nem planificam. O opróbrio deste povo em “Sede vacante”. Um trono vazio, que ao contrário do Direito Canónico não dura duas semanas e se arrasta, do pântano ao lodo.
Esperemos pela aparição, na “Varanda das Bênçãos” e pelo 11 de Março, para ver se ninguém foge do país numa dessas passarolas.
O resto? O resto as mãos calejadas e suadas do povo resolvem. Como diria o almirante, não o atual, o outro, “Não há perigo, o povo é sereno. É só fumaça! É só fumaça!”
Ou como cantava o arranjador, poete e músico “Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera se levantam antiquíssimos rumores As festas e os suores.
Os bombos de Lavacolhos”, que meu sogro tocou como ninguém.
Batam bombos, atirem fora tarecos velhos, desenlacem-se e avancemos. Com espumante e champanhe, vinho de pacote e vodka manhoso, “A chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila. O bater inexorável dos corações produtores, os tambores. De quem é o carvalhal? É nosso!”. E ninguém no-lo haverá tirar.
Opinião | Amadeu Araújo – Jornalista
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