Opinião
Estado Providência vs. Homem Providencial
Seis agendas, mais de 3000 ficheiros e um total de 2268 dias de vida social e profissional. Assim se resume, em números, a matéria de investigação divulgada no mais recente podcast da SIC/Expresso intitulado “A Agenda de Ricardo Salgado”.
Cobrindo mais de seis anos de encontros registados pelo ex-Dono Disto Tudo, Pedro Coelho – um jornalista que não abdica de fazer jornalismo – revela as personalidades mais assíduas do “salão de influência” do Grupo Espírito Santo, narrando, detalhadamente, as anotações encontradas na agenda profissional de Ricardo Salgado, e, ainda, analisando milhares de mails, relatórios, pareceres, apelos e, até, descrições de estado de alma.
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Lançado no passado dia 7 de maio, o primeiro episódio deste podcast especial – como lhe chama o Expresso – dedica-se a explicar a decadência do “velho banqueiro”, após um percurso promissor, num caminho ascendente, que sustentara o estatuto invulgar e a altivez de Ricardo Salgado, “o homem providencial”, “amigo de alguns dos poderosos da República”, perito na promoção de relações de circunstância, “mesmo que algumas circunstâncias se tenham prolongado muito no tempo”.
No segundo episódio do podcast, o reputado social-democrata Fernando Negrão – advogado, juiz, Ministro da Segurança Social, da Família e da Criança, Diretor-Geral da Polícia Judiciária e Oficial da Força Aérea Portuguesa, de entre outras façanhas que constam do seu currículo – justifica as suas aparições no escritório de Ricardo Salgado. Não consta que a altura daquele gabinete, instalado num 15.º andar, tenha suscitado quaisquer tremores ou vertigens aos 156 políticos, “de todos os quadrantes políticos”, que, segundo a tão incómoda agenda, por ali passaram…
Na dita agenda – revela Pedro Coelho – até o nosso Marcelo, o homem sofisticado, de personalidade urbano-urbano, que é “amigo do amigo, mas ainda mais amigo da verdade”, que se apregoa “presidente de todos os portugueses”, é citado uma dúzia de vezes.
A acreditar na reportagem – não esqueçamos que a natureza maquiavélica não há de ser exclusiva da Procuradora-Geral da República -, o professor, constitucionalista, escreveu uns
pareceres para a Ascendi – empresa que era detida em boa parte pelo Grupo Espírito Santo – a pedido do próprio Ricardo Salgado.
Marcelo alega que nem sequer foi pago por tal tarefa, prática comum na vida do profissional Rebelo de Sousa, homem tão zeloso da sua integridade que nem pede o bem-bom do dinheirinho. Porventura, o atual Presidente da República, intérprete genial do universo político social, ter-se-á esquecido que, ao contrário do que faz crer, o fator que simboliza a independência é a presunção de um pagamento justo pelo serviço prestado. De outra forma, nós faríamos favores a desconhecidos e cobraríamos impiedosamente a quem nos é mais próximo – o que é estúpido!
“Marceladas” à parte, o próximo episódio de “A Agenda de Ricardo Salgado”, adianta o autor, terá como protagonistas Eduardo Catroga e Durão Barroso, em mais 20 minutos de reportagem que se prevê carregada de boas marotices e muitos encontros suspeitos, recheados da nossa nata social, económica e política.
Ora, perante a abrangência daquele “salão de influência” e o aspeto atual, bastante decrépito, do ex-banqueiro – perdoe-me a franqueza, Dr. Ricardo – julgo que o país tem uma importante decisão a tomar.
Sejamos realistas: Ricardo Salgado já não é a mesma pessoa. Basta acompanhar as suas entradas em tribunal, observar os cerca de 3000 mil passos a que o acusado recorre, lenta e penosamente, só para alcançar o tapete da entrada da Casa da Justiça.
O mais provável é que Ricardo Salgado padeça, de facto, da doença de Alzheimer – se não padecer, é-lhe devido um Óscar da Academia – e, por isso, considerada a sua condição e a sua idade avançada, o ex-Dono Disto Tudo nunca pisará a cela de uma prisão.
Aceitando estas circunstâncias, resignando-nos com a fatalidade de não vermos a justiça concretizada num idoso decrépito, de pijama de listas pretas e brancas, julgo que o país ganharia mais em aproveitar a sua condição de inimputabilidade, exigindo um livro de memórias a Ricardo Salgado. E com carácter de urgência, não vá o Alzheimer antecipar-se à verdade.
Dir-lhe-íamos: “Dr. Salgado, o país tomou a decisão coletiva de lhe conceder um perdão comunitário, se o Sr. Dr. usar os seus 37 por cento de cérebro restantes para nos contar
detalhadamente as suas aldrabices”. Perderíamos um condenado pela Justiça, é certo, mas ganharíamos um retrato histórico, fidedigno, contado na primeira pessoa, dos primeiros 15 anos do milénio.
Pensem bem… a troco de um pequeno perdão, de uma absolvição cínica, teríamos em mãos um completíssimo manual de crime organizado entre poder político e poder financeiro, dividido em fascículos e com prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa. Bem combinado, até se poderia ligar ao amigo de José Sócrates para impulsionar as vendas do livro.
Acredito muito no potencial deste manual e acredito mais ainda que o sucesso do nosso modelo de sociedade, do nosso regime – este bolo de Estado Providência em que o “Estado” começa a esfarelar e a “Providência” já parece ter bolor – depende, hoje, da boa vontade do “Homem Providencial”.
Dr. Ricardo, vá lá… providencie-nos uma última vez.
OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA
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