Opinião

Drama Cartesiano 

OPINIÃO | Bernardo Neto Parra | 3 semanas atrás em 23-08-2024

Vivo encharcado. 

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Sim, isso mesmo: ENCHARCADO! 

Mas, encharcado em quê?”, perguntará, legitimamente, o leitor. “Em sucesso?” – Não, infelizmente não vivo alagado em sucesso. “Encharcado em dinheiro?” – Gostava muito, mas não. 

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Então, em fama e glória?” – Também não, nem sucesso, nem dinheiro, nem, tão pouco, fama e glória… nada disso me encharca. 

Em semanas como esta, agradeço qualquer aragem que percorra a cidade, qualquer ar frio que me dê uma pausa destes verões, sufocantes, com temperaturas máximas acima de 40 graus – meses em que vivo encharcado… em suor! 

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Exatamente: S-U-O-R. Suor. Transpiração. O produto das glândulas sudoríparas que me impedem de entrar em sobreaquecimento e – quem sabe – derreter. 

O suor vai tomando conta de mim, deixando o meu corpo fora do controlo, coberto de pequenas (nano)gotículas de água que se formam, em crescendo, e se distribuem arbitrariamente pela cabeça, tronco e membros. Filho da mãe do suor!… sintoma fatal da natureza acalorada que persegue a minha existência e que reforça o meu ateísmo – nenhum Criador decente se lembraria de me atribuir tão penosa condição biológica! 

Eu sei, toda a gente sua. Mas o meu caso é de tal forma crítico que, em mim, a transpiração não precisa de trabalhos intensivos, exercício físico ou maratonas exaustivas. Não, nada disso… e nem se trata de suor facilmente atenuado por qualquer ar condicionado ou por uma pausa ao ar livre.

A verdade, aliás, é que não preciso sequer de estar ativo para que o suor se apresente e me encharque. Posso encontrar-me absolutamente estático, em repouso e firme descanso, ou até mesmo a dormir… posso, mesmo, estar em modo de pré-hibernação, num daqueles preguiçosos e duradouros sonos, capazes de fazer inveja a ursos pardos, que o suor vem na mesma ao meu encontro, instala se à vontadinha e toma conta de mim. 

O suor aparece, faça eu o que fizer, obrigando-me a expelir água, sem critério, litros e litros, a sair de cada poro. Uma autêntica avalanche, um tsunami de transpiração cujos limites de expansão eu desconheço – pode variar entre circunferências indiscretas debaixo das axilas até uma enxurrada que me encharca da raiz do cabelo às falanges dos dedos dos pés. 

Nos dias piores, confesso, os nervos são alimentados pela antecipação da transpiração, criando uma lógica circular, em que dou por mim a questionar-me: “Espera lá, mas, afinal, eu estou a transpirar por causa dos nervos ou estou nervoso porque estou a transpirar?!”. Esquecido o dilema, regressa a perceção suada de mim próprio e, instantaneamente, o bicho do nervoso miudinho volta a inchar no meu organismo, avolumado como um peixe-balão que se vê em apuros… e lá começa tudo de novo: “Porra, já se começa a notar o suor na testa. E se passa para o cabelo? Onde é que eu arranjo um secador aqui?”. É uma canseira… 

Seco o cabelo encharcado de suor e vejo-me ainda mais afogueado, torturado pelo calor provocado pelo “amigo” secador que, ao invés de resolver o drama do cabelo transpirado, faz nascer pequenas cascatas na minha testa. O cabelo, eventualmente, chega a secar, mas a testa insiste em alimentar aquela que parece ser a nascente de um pequeno riacho. 

Enquanto isso, atrás de mim, desce uma corrente que, nascida na nuca, vem desaguar na linha que separa as nádegas, obrigando-me a evitar voltar as costas a alguém. Por essa altura, já nem o ato de me sentar é recomendável, sob pena de,

mais tarde, ao levantar-me, ter de encarar o olhar enojado de quem, morbidamente, observa a mancha deixada no assento onde havia repousado o traseiro. 

Quando é que isto acaba? Alguém descobrirá a cura para esta espécie de entidade caótica e sobrenatural? Haverá alguma mezinha capaz de acalmar o meu sistema nervoso que, por sinal, é bastante nervoso? – vou-me perguntando. Porém, até que alguém invente uma solução milagrosa, até que alguém domine esta torrente de água e sais minerais, não vale a pena ir alimentando perguntas que só aumentam a minha ansiedade e me fazem suar ainda mais. 

Em todo este drama cartesiano – “Suo, logo existo” -, consolo-me, pelo menos, com a possibilidade de imaginar a origem de tão estranha condição. Na procura de justificar a maldição líquida que me atormenta, especulo, há muito, sobre a madrugada em que eu nasci, imaginando um grande mal-entendido no berçário onde, pela primeira vez, repousei. 

Será possível que eu tenha sido trocado na maternidade e seja, na realidade, um jovem escandinavo, biologicamente preparado para conviver com o clima frio do norte da Europa e não com o calor tórrido que Portugal nos oferece? Poderei eu, afinal, ser descendente de dois noruegueses, com uma genética concebida para desfrutar da frescura do Mar do Norte e não para conviver com a aridez e as altas temperaturas desta ocidental praia lusitana? 

Se assim for, agrada-me a ideia de, na península escandinava, algures entre Oslo e Helsínquia, existir um pobre desgraçado, irritado, com estalactites no nariz, a praguejar contra o frio diabólico daquelas bandas… um qualquer Sven ou Olav, que, por causa do sangue tuga que lhe corre nas veias, sonha com este caloribérico que me atenta e amaldiçoa os ventos gélidos dos fiordes que, nestes dias, tanto tenho desejado. 

Ânimo, Sven… Estamos juntos!

OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA

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