Crimes
Doença sem remédio
A notícia não é fresca, mas está longe de estar imprópria para consumo: então não é que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cansada do marasmo de agosto, resolveu dar um raspanete ao José Rodrigues dos Santos!?
O raspanete – ou deliberação, como lhe chama a ERC – refere-se a uma entrevista à deputada europeia (à época, candidata) Marta Temido, transmitida no passado dia 5 de junho, durante a qual, alegadamente, o jornalista da RTP terá sido demasiadamente acintoso nas perguntas dirigidas à dirigente socialista.
Dois meses bastaram para que a ERC visse e revisse a dita entrevista, com aproximadamente 10 minutos de duração, e tornasse pública a deliberação ERC/2024/388 relativamente a “Participações contra a RTP1 a propósito da
exibição de uma entrevista a Marta Temido, cabeça de lista pelo PS às eleições europeias”. Concluíram, então, os reguladores que o jornalista do canal público fora mauzinho com a ex-ministra da Saúde, tendo-se atrevido a fazer-lhe questões potencialmente desconfortáveis que, notoriamente, não caíram no goto da entrevistada. E não foi apenas Marta Temido a não apreciar o estilo do pivô…
Segundo a comunicação social, foram apresentadas três queixas contra a RTP, relativas à dita entrevista, que, de acordo com a ERC, “pela forma como foi conduzida, afastou-se do registo de factualidade” e “é suscetível de prejudicar o direito dos telespetadores de serem informados”. Para aquela Entidade, o jornalista “subverteu os princípios” que deveriam nortear a sua missão, e, no meio do raspanete – perdão, da deliberação – a ERC aproveitou, ainda, para “salientar a relevância e a responsabilidade dos meios de comunicação social nos períodos eleitorais como ferramentas essenciais para informar e esclarecer as escolhas dos cidadãos” e “verificar que, na entrevista analisada, não foi conferido espaço à entrevistada para expor os seus pontos de vista”.
Sendo eu sensível sempre que está em causa a liberdade dos media, resolvi desconfiar da memória e rever atentamente a infame entrevista. Pude, então, comprovar que esta se centrara em temas bastante maçadores, como os Fundos de Coesão, a subsidiodependência, e o aproveitamento deficitário dos apoios comunitários. José, o jornalista, esteve particularmente provocador; Marta, a candidata, esteve visivelmente nervosa; e os dez minutos de conversa entre ambos geraram uma minientrevista mais animada do que de costume, com direito a ironias tensas e caneladas marotas.
No final, já cansada da difícil gestão das suas cábulas, em resposta ao agradecimento do entrevistador – “Marta Temido, muito obrigado por ter vindo” – a agora eurodeputada retorquiu com um insólito: “Eu não posso dizer o mesmo, mas muito obrigada”. Curiosamente, este episódio não mereceu um único reparo da ERC, a quem se exigiria que protegesse os telespetadores de respostas ilógicas ou absurdas proferidas por candidatos políticos, de quem se devia exigir, pelo menos, coerência sintática.
Quem não gostou da descompostura – pois, claro – foi José Rodrigues dos Santos, que contestou a decisão da ERC, alegando um “atentado à liberdade dos jornalistas em democracia” e ripostando que a entrevistada, Marta Temido, tinha negado “informação factualmente verdadeira” e prestado “declarações factualmente falsas”.
Não sendo um particular admirador das qualidades literárias de Rodrigues dos Santos, e tão pouco sendo um entusiasta do seu estilo jornalístico, sinto-me obrigado a defender o pivô… e a liberdade de imprensa, já agora.
Vale o que vale, eu sei… suspeito até que a ERC não se ralará, nada, com o meu juízo. Ainda assim, não me dispenso de partilhar as minhas desconfianças sobre esta deliberação em tom de reprimenda que, ou muito me engano ou, não irá integrar os anais do mau jornalismo (e já tanto por aí…), mas antes fará parte do extenso registo de palermices (vamos chamar-lhes “palermices”, para facilitar) da polémica Reguladora.
Partilhada a suspeita, e assimilado este diagnóstico pouco animador para a liberdade de imprensa, a boa notícia é que o jornalista visado pela ERC trabalha no canal público, o que nos leva a acreditar que a independência da RTP está de boa saúde, ao contrário da ERC, cuja doença parece não ter remédio.
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