Opinião
Dias de reflexão
Confesso a minha dificuldade em perceber esta originalidade de a democracia me exigir que, na véspera e no dia em que ela mais devia ser celebrada, eu permaneça em silêncio. Calado, a refletir. Para mais, haverá melhor forma de fazer uma reflexão do que debater ideias e visões do mundo com outros?
Mas como não quero ser acusado de quebrar nenhuma lei, sinto-me até um pouco constrangido: tudo aquilo sobre o que queria falar, neste dia, é proibido. Perdoar-me-á o leitor, portanto, se me ficar hoje por uma pequena lista de sugestões para dias de reflexão. A literatura, o cinema e a música, sempre bons companheiros nestas circunstâncias, tomam conta desta crónica a partir de agora.
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Livros
– “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir. Um clássico, sobre a construção social do género e a opressão das mulheres ao longo da história. Depois de ler, pode oferecer àquele amigo que, no Dia da Mulher, pergunta sempre porque é que não há um Dia do Homem.
– “Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola”, de Maya Angelou. Um outro tipo de clássico. Mais do que uma autobiografia, é um verdadeiro teste: se não terminar a sua leitura simultaneamente destroçado e invadido de uma força imensa, não é uma pessoa decente.
– “As Vinhas da Ira”, de John Steinbeck. E por falar em clássicos… Um olhar sobre a desigualdade social que é um murro no estômago, a partir da história de uma família que perde tudo depois de não conseguir pagar o empréstimo ao banco. É passado no tempo da Grande Depressão nos Estados Unidos, caso estivesse a pensar que era uma obra recente…
– “O Dia dos Prodígios”, de Lídia Jorge. De uma das maiores escritoras portuguesas, uma recordação de que o reacionarismo de certas estruturas de poder é sempre mais forte do que imaginamos inicialmente.
Filmes
– “12 Anos Escravo”, de Steve McQueen. Baseado num livro autobiográfico, é um filme brutal e poderoso sobre escravidão e racismo. São temas muito afastados da realidade de Portugal, país que nunca traficou escravos e onde não existe racismo, mas mesmo assim vale a pena ver.
– “Moonlight, de Barry Jenkins. Raça, identidade sexual e pobreza (mas também o amor), a partir do percurso de vida de um jovem negro gay nos Estados Unidos. Ideal para ver com aquele tio que votou… perceberão que não posso acabar esta frase por causa daquilo da reflexão…
– “Parasitas”, de Bong Joon-ho. Uma sátira sobre a disparidade entre ricos e pobres. Se não fosse uma comédia, era provável que sentisse vontade de chorar no final.
– “Fahrenheit 9/11”, de Michael Moore. Um documentário que explora temas como patriotismo, medo e propaganda. Matérias sobre as quais também não estamos a precisar, enquanto nação, de refletir.
Canções
– “What’s Going On”, de Marvin Gaye. Uma das maiores canções de sempre. Como é sobre discriminação racial e brutalidade policial, e simultaneamente um apelo emocionante à luta contra as injustiças, aproveite para ouvir antes que seja proibida.
– “People Have the Power”, de Patti Smith. Um hino sobre o poder da comunidade. Soa melhor quanto mais alto se grita o refrão.
– “This Is America”, de Childish Gambino. Já não se fazem muitas canções assim. E já que se está a mexer porque o ritmo é irresistível, pode ser que o faça mexer também contra a violência armada e o racismo.
– “All You Fascists Bound to Lose”, de Woody Guthrie. O título explica tudo e eu nem sequer posso dizer mais nada hoje.
Boa reflexão!
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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