Opinião

Dia Internacional das Pessoas com Superpoderes

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | 12 meses atrás em 02-12-2023

Assinala-se a 3 de dezembro o Dia Internacional das Pessoas com Superpoderes. Perdão, queria dizer Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. Não pretendo encontrar desculpas para o meu lapso, mas creio ser compreensível este erro, olhando para a forma como tantos – no discurso político, na comunicação social, nas nossas interações sociais – se referem a estes temas.

Oh, o meu reino por um exemplo inspirador! Quem não se sentiu já capaz de mover uma montanha depois de escutar a comovente história de alguém que, «apesar da deficiência», conseguiu mover duas ou três? O problema? Desde logo, a injustiça desta expetativa. Quem acha razoável esperar que um qualquer estranho com quem se cruza na rua o leve a mudar a perceção do mundo ou de si mesmo, simplesmente através da sua biografia? Certamente, ninguém. Mas se esse estranho estiver numa cadeira de rodas, parece quase ofensivo que ele não se digne a inspirar-nos! Como se atreve a não ser um exemplo para o mundo inteiro? Como se atreve a não ser um Super-Homem ou uma Super-Mulher? Como se atreve a não fazer já – aqui e agora! sempre! – uma demonstração dos seus poderes?

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Outra tendência facilmente observável é aquilo que poderíamos designar por ‘a deficiência como uma oportunidade’, em que quase parece estarmos perante um daqueles anúncios televisivos a produtos de higiene íntima feminina que permitem à sua protagonista ir à praia ou andar a cavalo…

É outro tipo de poder: poder fazer isto, poder fazer aquilo. Todo um novo mundo de possibilidades que se abre, em rigoroso exclusivo, para as pessoas com deficiência! Infelizmente, esta realidade alternativa – adotada frequentemente por decisores políticos, inebriados com os seus próprios discursos redondos em debates em que nada é debatido, como forma de garantir que nada é alterado – é construída em cima de ideias paternalistas, em si mesmo diminuidoras das experiências reais de cada um.

Perante tudo isto, acaba por haver sempre quem se indigne com as manifestações e reivindicações das pessoas com deficiência, a menos que aquelas acabem em inho: um pedidozinho, um favorzinho. A exigência de direitos é algo que parece fora de personagem para alguém que até é sempre tão simpático e que fica feliz com um mero sorriso… e aqui está outra simplificação da individualidade, misto de infantilização e negação de identidade. Acantonar alguém numa personalidade-tipo resulta apenas na homogeneização do que é, por natureza, diferente, mesmo quando existam boas intenções por detrás dessa atitude. Mas voltando atrás: direitos não são favores. E entre esses direitos está o de protestar contra as injustiças, sem ter de pedir desculpas por isso.

Na base de tudo o que ficou escrito acima está a tendência, ainda muito prevalente um pouco por todo o lado, de que as questões da deficiência devem ser encaradas olhando para aquilo que a própria pessoa com deficiência pode mudar em si. Nada mais errado. Os exemplos inspiradores, as oportunidades imperdíveis e as pequenas caridades existem porque, enquanto sociedade, continuamos a não encarar tudo o que devíamos mudar à volta dessas pessoas. A eliminação dos obstáculos, sejam eles físicos ou atitudinais, é a única discussão efetiva que devíamos ter neste campo.

Claro que isto seria um aborrecimento para todos os que adoram sentir-se inspirados pelo esforço alheio, mas a vida não é um filme. Guardemos os superpoderes para a ficção.

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