Opinião
De quem é a culpa?
A pergunta destacada no título desta crónica é uma daquelas interrogações que só os usuários da democracia liberal podem fazer. Aí, nesse ideal coletivo que tanto elogiamos, mas que pouco prezamos, a auscultação de responsabilidades e a imputação da culpa são privilégios comunitários dos quais não prescindimos – ou não fossemos nós democratas convictos, crentes nos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade que fundaram o espírito republicano.
Irados, frustrados, certos de que não nos estão a oferecer o que merecemos, gritamos em busca dos culpados, da gente que nos priva de um futuro solarengo, sem espaço para falências, escassez ou destruição. “Queremos mais! Nós merecemos mais! Nós! Nós!”, concordamos vigorosos, em frente à televisão, ansiosos por descortinar as caras da culpa que atrasa o nosso país, terra de tão vasto potencial.
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No final, encarada a destruição, queremos respostas… Onde mora a culpa, a responsável por este estado de coisas?
Onde está a culpa da calamidade incendiária que voltou a inflamar a nossa terra?
Culpamos as políticas relacionadas com o ordenamento de território perpetradas pelas governações portuguesas das últimas décadas, esta gerência incapaz que se preocupa em limpar os talheres de prata sem sequer confirmar se há gás para preparar a refeição?
Ou atiramos as culpas para o centralismo lisboeta, o fenómeno guloso e egoísta que insiste em concentrar a papa num só prato?
Será a culpa dos eucaliptos, essa espécie particular, antes apelidada “petróleo verde”, consumida pelo fogo com a rapidez do obeso esfomeado a quem deram o pacote das batatas fritas?
Lentamente a culpa vai-se desvanecendo e dá lugar ao entretenimento, ao debate sobre as grandes reformas e as medidas urgentes, à mise-en-scène que ocupa as
sessões parlamentares e os debates televisivos, às reuniões e grupos de trabalho que, por esta altura, labutam arduamente na conceção de um novo plano, um Orçamento de Estado que, em 2025, nos garanta um futuro próspero e virtuoso onde não haja lugar para culpa.
“Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório, foi isso que te ensinaram, não é verdade? Esta merda não anda porque a malta, pá… a malta não quer que esta merda ande. Tenho dito! E se a culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é verdade!?”, já cantava José Mário Branco, um sonhador desiludido que, há 40 anos, mandava foder o progresso e o futuro, que desejava morrer descansado e viver sozinho, longe da retidão do FMI, enquanto apelava ironicamente por entretenimento, o ópio que nos livrasse dos verdadeiros males do mundo.
“Sempre a merda do futuro e eu que me quilhe. E eu, porra?”, gritam hoje, quatro décadas depois, as vítimas do fogo. “E eu?”, repetem os alunos sem professores. “Que porra!”, calam os pobres e desvalidos, reduzidos à precariedade dos rendimentos miseráveis que o país oferece.
Eu, como a maioria, não tenho resposta. Desde cedo, aliás, soube que não possuía em mim a arte de dar respostas, a altivez, aquele talento inato que veste fatos e gravatas e faz um político, o dom que disfarça os ignorantes de gente sabedora, capazes de pedir a confiança do povo.
E eu, como a maioria – carregado de culpa como bom português que sou –, voltarei a confiar nas promessas daquela espécie de virtuosos.
Eu, como quase sempre, vou colocar a minha fé na gente que nos conduz, em cavaleiros negros como Luís Montenegro, o primeiro-ministro incapaz de atenuar a fatalidade das chamas, mas que promete perseguir os incendiários sem perdão. Valha-nos o nosso Batman nortenho, escondido na armadura justiceira e denunciado pelo queixo marcado, o homem que nos livra da culpa, mas não nos livra do mal. Ámen.
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