Na entrevista em que lançou a sua candidatura à presidência da República – mesmo que isto possa não ser factual ou rigoroso, tem piada pensar que há um país em que a possibilidade é sequer colocada de forma séria – Cristina Ferreira manifestou também encarar o feminismo com aquilo a que podemos chamar sobranceria (se quisermos ser simpáticos).
Avançando desde logo com o argumento, que não surpreenderia em Andrew Tate, de que as feministas fazem mal às mulheres, a apresentadora perorou depois sobre essa platitude que é dizer que qualquer pessoa é capaz de tudo, qualquer que seja o seu género (mesmo que nem todos tenhamos pipi, perdão, Pipy), e que só isso importa. Ficou por dizer, porém, que o vácuo ideológico inerente a tal afirmação só pode ser preenchido, e tornar-se consequente, pela luta que o feminismo concretiza.
Claro que toda esta reflexão causa demasiadas dores de cabeça ao eleitor médio português e a presidenciável empreendedora também não foi aos estúdios da CNN para causar enxaquecas a ninguém! Mas o que foi, então, lá fazer?
Vender. Não vender nenhum produto em particular (mesmo que o Pipy esteja, por estes dias, na boca de toda a gente – o que, se bem percebi, não é o sítio correto do corpo para estar), mas vender todos os produtos que seja possível imaginar sob a capa do mesmo empoderamento feminino que se diz recusar. Ao manifestar-se contra quotas para garantir a igualdade de género, mais do que apresentar uma posição ideológica, Cristina Ferreira, está a defender o seu espaço no mercado, a proteger-se contra a concorrência.
Feminista não será, mas também não é parva! Podemos ter a certeza disto, porque há anos a vemos utilizar os mesmos conceitos e preocupações do feminismo para benefício próprio e da(s) sua(s) marca(s). Quando a ouvimos queixar-se da forma como a sua saída da SIC foi comentada, comparativamente à saída de Ruben Amorim do Sporting, sabemos duas coisas: já a escutámos várias vezes recusar críticas que lhe são dirigidas recorrendo àquele mesmo argumento; nunca a veremos mexer uma palha para mudar a discriminação sistémica de que as mulheres ainda são, de facto, alvo.
As audiências televisivas que consegue há anos, as multidões que movimenta, os milhões que gera: tudo isto quererá dizer que Cristina Ferreira está certa em alguma coisa, mas sobretudo significa que soube construir a sua personagem tirando partido do progresso feminista, mesmo este sendo-lhe indiferente, consciente de que a sociedade em que vivemos é muito mais do espetáculo (e do capitalismo) do que dos valores.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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