Medicamentos
Covid-19: Bioquímico alerta que pode não haver vacina apesar dos esforços
A pressa é inimiga da perfeição e numa vacina pode custar a saúde, alerta o bioquímico Miguel Castanho, que avisa que o mundo tem de estar preparado para não haver uma vacina para a covid-19, apesar dos esforços.
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Mas a haver, num prazo de dois anos, será um “feito extraordinário”, assinala o investigador e professor catedrático de bioquímica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (UL), em declarações à agência Lusa.
A corrida a uma vacina para a covid-19, doença respiratória aguda provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 e que se tornou pandémica, tem-se intensificado, com anúncios de várias vacinas em teste, que, em prazos sucessivos, cada vez mais curtos, poderão estar prontas dentro de ano e meio, no próximo ano ou em menos de seis meses.
Os anúncios, díspares, são intercalados por promessas de milhões de euros e dólares de investimento por parte dos governos, na tentativa de acelerarem a produção do “Santo Graal”.
Recentemente, a Comissão Europeia e os seus parceiros mundiais, autoexcluindo-se os Estados Unidos, lançaram uma campanha de recolha de fundos para angariar 7,5 mil milhões de euros, verba destinada em parte a financiar o desenvolvimento de uma vacina para a covid-19. Portugal comprometeu-se a doar 10 milhões de euros, a maioria contribuições privadas.
A corrida à vacina para esta nova doença infecciosa, com metas tão diferentes, não é inédita, segundo Miguel Castanho.
“Algo parecido”, refere, aconteceu com o VIH/sida, vírus identificado na década de 1980 e para o qual “foram anunciadas várias vacinas”, e feitos investimentos, mas “nunca se chegou a uma com sucesso”.
Hoje, a sida é uma doença crónica tratável com um ‘cocktail’ de medicamentos antirretrovirais, mas o investimento na doença “vai decrescendo” aos poucos, sustenta o investigador, que coordena o laboratório de Bioquímica Física de Fármacos do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes da UL.
Para Miguel Castanho, “é normal, numa situação de grande expectativa e urgência”, como uma pandemia como a covid-19 ou a sida, que se multipliquem os anúncios de possíveis vacinas.
“Existe uma enorme pressão política para dar boas notícias, e daí retirar alguns dividendos”, sublinha.
Não só os governos, que substituem os laboratórios científicos nos anúncios públicos de vacinas em desenvolvimento, mas também as empresas farmacêuticas e os próprios cientistas querem dar boas notícias em tempo de crise.
Os cientistas, porque pretendem “obter o reconhecimento”. As farmacêuticas, as mais pequenas, porque procuram “manter o interesse dos investidores” e “corresponder às expectativas e ao investimento feito”, nem sempre se sujeitando a uma “análise crítica e cética” dos resultados.
A criação de uma vacina é “um projeto muito longo e com muito investimento”, que pressupõe várias etapas, lembra Miguel Castanho.
O processo inclui ensaios pré-clínicos, com células e animais, e ensaios clínicos, com pessoas saudáveis e doentes, em grupos menos e mais alargados, com pessoas de diversas origens, idades e sexos e de diferentes contextos geográficos, económicos, sociais, culturais e de saúde.
“O risco da pressa é queimar etapas, queimar etapas pode ter consequências muito perigosas”, adverte o docente, que dirige o Instituto de Bioquímica da Faculdade de Medicina da UL.
Uma vacina serve para proteger as pessoas de uma doença, “não é para fazer mal, adicionar um problema a outro problema”, enfatiza.
Miguel Castanho recorda que o desenvolvimento de uma vacina é marcado por “avanços e recuos”, por “pequenos reveses” que podem ter solução, mas também por “reveses irreversíveis”.
“Muitos projetos recuam e ficam parados a meio”, frisa.
Foi o que sucedeu com as potenciais vacinas para os coronavírus da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e da MERS (Síndrome Respiratória do Médio Oriente), cujos projetos foram interrompidos, diz.
Hoje está-se a “pagar o preço” na investigação de uma vacina para a covid-19, defende.
Segundo o bioquímico, ter uma vacina para a covid-19, produzida e distribuída em massa, dentro de ano e meio é ser otimista e contar “com alguma sorte”.
Uma vacina, segura e eficaz, aprovada para uso clínico em dois anos será um “feito extraordinário”. Este ano, impossível, afiança.
Em média, a produção de uma vacina demora 10 anos devido ao crivo de testes de segurança e eficácia.
Miguel Castanho ressalva que uma coisa é ter uma vacina pronta para ser usada em humanos, outra coisa é poder comprá-la numa farmácia e administrá-la num centro de saúde.
Por isso, fabricar e distribuir uma vacina em larga escala é “um problema” acrescido, de tempo, ao seu desenvolvimento em laboratório e à sua aprovação pelas entidades reguladoras do medicamento.
Por outro lado, “os países que tiverem capacidade de produção de uma vacina, primeiro imunizam a sua população e depois é que exportam”.
Além dos processos de desenvolvimento de uma vacina e da sua produção, distribuição e administração em massa serem morosos, agudizando-se numa pandemia, há “o risco”, acrescenta Miguel Castanho, do que se desconhece sobre uma doença infecciosa causada por um vírus novo, que foi identificado em dezembro na China.
“Devemos estar preparados para não existir a vacina”, alerta.
Dado o comportamento estranho do SARS-CoV-2, que pode provocar uma simples constipação ou, nas situações mais graves, uma pneumonia ou uma insuficiência respiratória, chegar a uma vacina será uma tarefa “mais difícil” do que obter um ou mais medicamentos para combater a infeção (nem sempre sintomática) em vez de preveni-la.
O investigador explicou que os medicamentos “são desenhados para diferentes alvos” de um vírus, como o novo coronavírus, a partir de drogas novas ou antigas que “foram melhoradas e trabalhadas”.
No caso de uma vacina, o processo “é mais complexo”, adverte. Numa vacina, para que funcione e estimule as defesas do organismo, o alvo tem de ser uma “zona estável” da proteína exposta do vírus para que o sistema imunitário saiba reconhecê-la e desencadeie a resposta necessária.
A resposta passa pela produção de anticorpos (glicoproteínas) neutralizadores dos antigénios (proteínas virais).
A maioria das vacinas que se têm apresentado como candidatas para a covid-19 pretende atuar na proteína da espícula do SARS-CoV-2, a proteína-chave com a qual o novo coronavírus entra e replica-se nas células humanas gerando doença.
Contudo, de acordo com Miguel Castanho, ainda se desconhece qual é a zona estável da proteína.
Encontrar essa zona “é bastante difícil” dada “a imprevisibilidade” que caracteriza o SARS-CoV-2, cujo material genético é guardado em moléculas de ARN, que são “mais instáveis” do que as moléculas de ADN, que formam parte do organismo dos seres vivos, como os humanos. Vírus de ARN (um tipo de ácido nucleico) são mais propensos a mutações genéticas (erros), incluindo as que jogam a seu favor.
O bioquímico acha inevitável o aparecimento de “novas vagas” de covid-19, embora “mais amortecidas”, e o “equilíbrio com o vírus”. Tem sido assim com outros vírus, como o da gripe sazonal, que consta do calendário anual do outono e inverno.
Mas “quando o problema desaparecer do quotidiano” e as pessoas conviverem com o novo coronavírus, “há o perigo latente de subvalorizá-lo”, advoga.
Miguel Castanho recorda que a gripe espanhola, de 1918, a primeira de duas pandemias do século XX causadas pela família de vírus Influenza H1N1 (a outra foi em 2009), matou em dois anos 50 milhões a 100 milhões de pessoas e “bateu à porta” do mundo, inclusive Portugal, mas “caiu no esquecimento”.
O investigador considera que há uma tendência para menosprezar as doenças virais e bacterianas do passado e que, por soberba, o investimento na investigação de doenças infetocontagiosas não é o devido, face a outras patologias, apesar das lições aprendidas.
“Subestimamos a gripe, não temos grandes linhas de investimento”, sustenta, acentuando que, pelo historial pandémico, os vírus da gripe são “uma ameaça latente”, mais do que os coronavírus.
Em termos globais, a pandemia da covid-19 já provocou mais de 260 mil mortos e infetou mais de 3,8 milhões de pessoas em 195 países e territórios.
Mais de 1,2 milhões de doentes foram considerados curados.
Em Portugal, morreram 1.114 pessoas das 27.268 confirmadas como infetadas, e há 2.422 casos recuperados, de acordo com o mais recente balanço da Direção-Geral da Saúde.
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