Opinião
“Cãodenado”
Subi ao Monte de Santa Luzia, no Castelejo, de capa vermelha pelos ombros e Pálio nas mãos. No encontro, lá no alto, entre a Santa Luzia e o Senhor dos Milagres, crepitavam foguetes, já a serra ardia.
Foi lá, entre a saída da procissão, no adro da igreja, que voltei a ouvir o sotaque da minha Beira Baixa e que lembrei a Ti ’Adelaide, que criou minhas tias e seus muitos filhos.
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E dizia, Ti ‘Adelaide, antes de me mandar à Venda do senhor Salgueiro, apodo de tasca e mercearia, “ah cãodenado”, assim! Num neologismo que juntava cão danado com condenado.
“Cãodenado” somos nós todos, quando hoje repicam os sinos e descemos a bandeira à meia haste do luto, da tristeza e da raiva. Do desmazelo.
Ali, no quartel prodígio de arquitetura em forma de mangueira, chora-se de raiva.
Sónia Melo, 36 anos, Susana Carvalho, 44 anos, e Paulo Jorge Santos, 36 anos, pereceram na encosta do Mondego.
Vila Nova de Oliveirinha chora os nossos heróis, enquanto um truculento deputado clama que “este não é um governo mole”. O fanfarrão, pegando na “mão criminosa” de outro passa culpas, quis brandir batedor sem tocar na enxada.
Ora, como recordou a Renascença, é só ouvir a Rádio.
Ramalho Eanes, a chamar meios aéreos para a Lousã, disse, “que era preciso era acalmar as pessoas”, 1980; ainda os serviços florestais existiam e tinham meios aéreos.
Logo após, os 14 mortos de Armamar, 1986; seguidos, um ano mais tarde, dos falecidos no Caramulo, esse cemitério de heróis onde se plantam eucaliptos de avião.
Suspeitas de fogo posto, todos as cospem da boca. 21 mortes em 2003 e a promessa da “resistência psicológica” com Jorge Sampaio.
“Que tipo de amparo dar às populações”, perguntou o Presidente à época. Uma enxada nas fuças, direi eu, lembrado do Cavaco e dos cinco chilenos em Famalicão da Serra.
Em dois anos, 2012 e 2013, o fogo assou mais 13 pessoas. Sobrou silencio.
Em 2017 esse abraço de Marcelo ao transmontano Jorge Gomes.
Em 2024, com “a autoridade de quem não se conforma”, badalam os sinos em Vila Nova de Oliveirinha.
Morreram bombeiros, cidadãos, muitos animais, destruíram-se hectares de culturas, florestas e, em poucos dias, queimámos património ambiental que é de todos e que a tantos custou a conquistar e preservar.
Danos ecológico, num país que demorou um dia a declarar luto por todos, não só pelos bombeiros, que há mais de 600 anos se substituem ao Estado e se organizaram para defender povo.
Ontem, percorridos 400 km pelo inferno negro, não resisti. Tomei-me de vinhos e vi que falta dinheiro para acudir ao povo.
As novas regras orçamentais da União Europeia condicionam a despesa. E o orçamento do Estado esticou-se a cumprir promessas, como fona em eucaliptal quente.
A grande mentira, que aponta a causa do fogo e cospe na gestão da floresta. As teorias da conspiração, dos eucaliptos às eólicas, do lítio aos painéis fotovoltaicos, são vomitadas que nem água fraca em lume forte.
Estes asquerosos sumidouros do sistema não têm escrúpulos e estão agarrados que nem lapas no mar da madeira e das mordomias.
Ser implacável não é agir contra meia dúzia de funcionários de uma autarquia, é ordenar a floresta. Aumentar o IMI para quem abandona o prédio herdado, fazer o cadastro e assumir decência para com o país.
E, veloz, veio outro coscuvilheiro, ouvindo “ignições sucessivas, durante a noite, em áreas contíguas”.
Se estudassem e percebessem da dinâmica dos fluidos e das projeções, não diriam toleimas como “há praticamente uma certeza que não é a natureza que provoca estes incêndios”. Pois não pá, é a ineficiência do Estado, um sentimento inculcado de displicência, trocado pela propaganda e por um sistema que prebenda o mando com 5 mil euros e o trabalho com 3000, se fizer 24 horas dia no mês inteiro.
Ele não há coincidências, nem mãos de fósforo. Há ganância. E temos de ouvir, em Espanha, o governo declamar pelo desinteresse no mundo rural.
Não o disse em Viseu, onde durante 5 dias o mundo inteiro discutiu a agroecologia.
O mouro faria melhor em ouvir o Presidente da Câmara Municipal de Tábua que exige uma Área Integrada de Gestão da Paisagem, nos 1100 hectares queimados .
E se assim não for, nem a santidade nos salva.
Aprender cedo o respeito que os bombeiros merecem, ordenar o território e chega de encolher braços.
Dignidade que não vejo! Para não sermos os “cãodenados”, à espera do cardeal, enquanto sacudimos lágrimas no Salão Nobre dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova de Oliveirinha.
Cito Almada, “as pessoas que mais admiro são aquelas que nunca acabam”.
E agora deixem-me embebedar de azul e fecundem-se na terra onde procriaram!
OPINIÃO I AMADEU ARAUO – JORNALISTA
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