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Canibalismo?

NOTÍCIAS DE COIMBRA | 3 dias atrás em 26-03-2025

A história da medicina está repleta de tratamentos que, à luz dos conhecimentos atuais, podem parecer desconcertantes ou até bizarros. Um dos exemplos mais curiosos é a “múmia”, um remédio derivado de restos humanos mumificados.

Entre os séculos XII e XVII, médicos de toda a Europa receitavam pó de múmia para tratar uma vasta gama de doenças, desde hemorragias internas e fraturas ósseas até epilepsia e melancolia. A substância era considerada um elixir poderoso, carregado com a força vital dos antigos, e era procurada pela aristocracia e recomendada pelos especialistas da época. Contudo, com o avanço do conhecimento médico, a popularidade da múmia diminuiu, e no século XVIII o uso desta substância foi gradualmente abandonado.

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A crença nas propriedades curativas da múmia estava profundamente enraizada nas teorias médicas vigentes, como a doutrina das assinaturas. Segundo esta teoria, as substâncias naturais tinham semelhanças com as doenças que deveriam tratar, e a carne mumificada, preservada por séculos, parecia ser uma escolha natural para curar problemas como feridas, cáries e deterioração interna. Outra teoria importante era o vitalismo, que acreditava na possibilidade de transferir a “força vital” de um corpo preservado para um paciente doente, pode ler-se no ZAP.

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Além disso, o fascínio europeu pelas práticas médicas do mundo islâmico também influenciou o uso da múmia. Médicos árabes, como Avicena, falavam do betume, uma substância semelhante ao alcatrão, que tinha propriedades medicinais. Quando os textos árabes foram traduzidos para o latim, os estudiosos europeus confundiram o betume com as múmias egípcias, acreditando que os corpos embalsamados continham propriedades restauradoras. Esse erro deu origem a um próspero comércio de restos humanos mumificados, que eram adquiridos de túmulos egípcios, sepulturas profanadas e até de execuções.

A múmia era usada para tratar uma surpreendente variedade de condições. Os médicos acreditavam que ela acelerava a cura, prevenia infecções e até curava a epilepsia. Em pó ou em tinturas, era recomendada para hemorragias internas, acidentes vasculares cerebrais e tuberculose, sendo também utilizada para combater a melancolia ou restaurar a juventude. Tornou-se, assim, um remédio comum entre a elite europeia, sendo armazenada nos boticários ao lado de outros medicamentos de origem humana, como o crânio em pó e a gordura humana destilada.

Quanto mais antigos eram os restos mumificados, mais eficazes eram considerados os seus efeitos. No entanto, à medida que a demanda por múmia superava a oferta de múmias egípcias genuínas, os comerciantes recorreram a cadáveres mais recentes, chegando até a roubar corpos para abastecer o mercado.

Apesar do seu uso generalizado, a múmia também tinha os seus críticos. No século XVI, alguns médicos começaram a questionar tanto a sua eficácia quanto as implicações éticas do seu uso. O médico suíço Paracelso, por exemplo, defendia que apenas os restos humanos frescos, e não a carne antiga embalsamada, tinham valor terapêutico, enquanto outros viam o uso da múmia como uma superstição.

Nos séculos XVII e XVIII, a ascensão da ciência empírica e os avanços na anatomia e patologia tornaram cada vez mais difícil sustentar a ideia de que tecidos preservados durante séculos poderiam curar doenças. Ao mesmo tempo, a visão pública sobre os restos humanos começou a mudar. A popularização da egiptologia e o crescente interesse arqueológico pelas múmias transformaram-nas em artefactos históricos, afastando-as da medicina e tornando o seu consumo desagradável até para aqueles que anteriormente defendiam as suas propriedades curativas.

O declínio do uso da múmia ilustra bem como o conhecimento médico evolui, substituindo tratamentos outrora venerados por abordagens baseadas em evidências. Contudo, embora o uso de restos humanos para fins terapêuticos pareça chocante hoje em dia, a procura por curas milagrosas continua. Desde terapias com células estaminais até suplementos para longevidade, o desejo de explorar a essência da vida humana persiste, agora com um enfoque mais científico e rigoroso.

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