Coimbra
Boaventura de Sousa Santos diz que capitalismo incapacitou governos de responder à emergência sanitária
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos publicou um ensaio em que reflete sobre como a pandemia covid-19 veio revelar que o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado de responder a emergências, e que a natureza consegue defender-se da ação humana.
“A cruel pedagogia do vírus” é o título do ensaio publicado em formato digital pela Almedina, e que é apenas “um embrião para um livro maior” que Boaventura de Sousa Santos está a escrever, e que deverá ser publicado no final do ano, explicou o sociólogo à agência Lusa.
Neste pequeno livro, o sociólogo expõe ao longo de cinco capítulos as suas reflexões sobre o impacto da pandemia causada pelo novo coronavírus à luz do contexto social, económico e político dos últimos anos.
Uma das “cruéis” lições dadas pelo vírus é que o grande perigo não é a sua letalidade, mas a incapacidade de os sistemas públicos de saúde darem resposta às emergências, fruto de anos de cortes, na saúde e nas políticas sociais, e de privatizações.
Se essas lições que o vírus está a dar “não forem minimamente aprendidas, nunca se voltará à normalidade, e o novo normal será o que designo como pandemia intermitente”, afirmou o sociólogo, em entrevista à Lusa.
O especialista nas áreas da cidadania, poder social e globalização sublinha a “extraordinária” rapidez com que esta pandemia se propagou em todo o mundo, como nunca antes tinha acontecido, “produto das comunicações e da globalização que tornam o mundo mais pequeno, mais interdependente, mais vulnerável a tudo isto”.
O problema é que, “a continuar este modelo de desenvolvimento, haverá outras pandemias, que tenderão a ser mais mortíferas e tenderão a propagar-se mais rapidamente”.
Segundo Boaventura de Sousa Santos, desde a década de 1980, e “à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo, e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do setor financeiro”, o mundo tem vivido em permanente estado de crise, porque só assim se justificam os cortes e o desinvestimento nas políticas sociais, que têm como objetivo legitimar a concentração de riqueza.
Desta forma, as alternativas ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo foram sendo “expulsas do sistema político”, e “irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandémicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros”, escreve no ensaio.
Qual a cruel pedagogia que se retira daqui? Que, “ao contrário do que se dizia nos últimos quarenta anos – que o Estado é ineficiente e que devemos privatizar a saúde, a educação, a previdência social -, vemos que começa uma pandemia e os mercados não existem, são silenciosos”.
“Qual é a solução que os mercados nos oferecem para esta pandemia? Nenhuma. Portanto as pessoas recorreram ao Estado, não um Estado que os reprima, mas um Estado que os proteja”, salientou.
Boaventura de Sousa Santos considera, pois, que “a primeira mudança que tem de ser feita é esta nova centralidade de um Estado protetor, de bem estar, onde o investimento na saúde publica não seja um custo como tem sido até agora – os cortes foram em praticamente em todos os países – mas um investimento”.
Como exemplo, na Europa refere Itália e França, que “foram os [países] que mais privatizaram a saúde e foram também os que tiveram muito mais dificuldades”, mas também aqueles, como os Estados Unidos, que “nunca quiseram ter um SNS, [que] estão em situação de desastre”.
“Portugal teve cortes, desde 2011 foi objeto de muitos cortes. Há dez anos, o país estaria mais bem preparado, mas não foi dizimado e está a reagir bem, e através de uma politica bastante coerente que é hoje considerada modelar para evitar que o Sistema Nacional de Saúde entre em pandemia”, afirmou.
A segunda lição “cruel” que o vírus está a ensinar, e que está intrinsecamente ligada à primeira, é que o próprio modelo de desenvolvimento tem de mudar, para um mais sustentável e mais respeitador dos recursos naturais do planeta, defende o catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
O sociólogo acredita que as pandemias são a punição da natureza, pela sua violação sem limites, não no sentido de vingança, mas de “auto-defesa, para garantir a sua vida”.
“Sabemos hoje que todas estas grandes formas de mutação que os vírus estão a ter resultam de uma interação cada vez mais invasiva da vida humana na vida não humana. Desde há alguns séculos decidimos explorar a natureza sem limites. A vida humana é 0,01% da vida do planeta, a vida humana é muito pouca, o planeta não precisa de nós, nós precisamos mais do planeta do que ele de nós, e é evidente que temos de mudar o modelo de desenvolvimento e ter outra atenção à ecologia e à natureza”, afirmou.
Na opinião do catedrático, “deve estar condenada toda a energia assente nos combustíveis fosseis: temos de alterar a natureza energética, alterar os sistemas de transporte e favorecer os sistemas elétricos e os sistemas públicos em detrimento dos privados, temos que ter muitas alterações no nosso sistema de consumo”.
Após a pandemia, no regresso à normalidade possível, “não prevejo que possamos continuar a ter grandes aglomerações de gente durante muito tempo”, afirma, dando como exemplo os centros comerciais.
“Eu penso que este modelo de consumo está condenado e temos de acabar com estes centros comerciais e substituí-los por unidades mais pequenas, mais descentralizadas, mais próximas das populações e onde não se junte tanta gente durante tanto tempo”, acrescentou.
A atenção aos idosos não vai poder também continuar a ser a mesma que tem sido até agora, e os lares vão ter de aliar a componente residencial com unidade de saúde, para atuar preventivamente.
O sociólogo lança também um olhar à indústria que não pode continuar a crescer assente na mão de obra barata, com vista apenas ao lucro financeiro, para resultar depois em situações “patéticas” como a “do país mais rico, mais poderoso do mundo – os EUA – que não produz luvas, não produz máscaras, não produz respiradores”.
“O presidente Trump teve de recorrer a uma lei da guerra da Coreia para impor à General Motors que fabricasse respiradores, para não depender exclusivamente da China. Por isso, hoje em dia já se está a falar muito da relocalização em vez da globalização, de relocalizar as indústrias”, acrescentou.
Boaventura de Sousa Santos critica também toda a “hipertrofia que demos ao turismo”, a “indústria mais suscetível e mais vulnerável a qualquer crise”, que deixa o país em grande dependência, além de “subsidiar a indústria dos aviões, que é uma das mais poluentes”.
Na opinião do investigador, o caminho a seguir deveria ser aquele de que “já se está a falar, de uma soberania alimentar e industrial” do país.
Boaventura de Sousa Santos dedica ainda parte do ensaio aos grupos mais vulneráveis, que inclui, além dos idosos, as mulheres (designadamente vítimas de violência doméstica), os trabalhadores precários, os sem-abrigo, os moradores em bairros periféricos e degradados (como as favelas), os refugiados, os presos, os deficientes e os doentes mentais, todos aqueles que já são vítimas de desigualdade, mas que perante uma situação destas veem a sua situação agravar-se e, simultaneamente, tornar-se mais “invisível”, face ao pânico que se apodera dos que não estão habituados a ele.
Terminando o ensaio com um capítulo dedicado ao futuro, Boaventura de Sousa Santos sublinha que “há aqui uma mudança de época que deveria ser tomada em conta”, a questão em aberto é se “seremos capazes de aprender” com “as lições que a pandemia nos dá”.
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