Opinião

A virtude do habitat prisional 

OPINIÃO | Bernardo Neto Parra | 4 dias atrás em 15-09-2024

Esta é uma daquelas histórias que nos faz sentir divididos… a infame fuga dos cinco  prisioneiros de Vale de Judeus, em Alcoentre, na manhã do passado sábado. 

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É verdade que se trata de um conjunto de prisioneiros, criminosos punidos à luz da  Lei e condicionados pela Ordem, que (idealmente) deviam estar encarcerados,  longe da sociedade civil, desde há dias ameaçada pela putativa violência de quem  cremos estar disposto a fazer qualquer coisa para preservar a sua própria liberdade.  

Porém, quer queiramos quer não, insurge-se, em nós, a mesma emoção que nos fez  torcer por Michael Scofield em Prison Break, por Andy Dufresne em The Shawshank  Redemption ou por Pablo Escobar em Narcos. E, por isso, comandada por um espírito de groupie, fascinada pela rebeldia da disrupção que mora no nosso  imaginário, parte de nós clama pelo sucesso de Fernando Ferreira, Rodolf  Lohrmann, Mark Roscaleer, Shergili Farjiani e Fábio Loureiro, desejando que estes  rebeldes escapem às malhas da justiça incompetente que os não soube reter. 

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Outra parte de nós – esta mais resistente aos encantos rebeldes – convencida pela  racionalidade que instiga a urgência de capturar aqueles foragidos, rapidamente  nos põe os pés na terra e nos devolve o bom senso esquecido. Afinal, o lugar dos  criminosos é na cadeia – ou à beira-mar, em Cascais ou na Ericeira, se se tratar de  criminosos de bom colarinho. 

Certos da necessidade de repor a segurança pública e de credibilizar o sistema  prisional, fomos, entretanto, envolvidos num debate alargado, sustentado pelo  confronto de doutrinas e argumentos que todos se permitem discorrer, mesmo os  que nunca conheceram um presidiário ou nunca pisaram o chão de qualquer  cadeia.  

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Ao longo de toda a semana, repetidamente, os opinion makers da nossa praça  foram condenando as condições precárias das nossas prisões. Desde a  degradação das infraestruturas que integram a rede daqueles estabelecimentos até à escassez dos salários e à aridez das carreiras de quem vigia e protege os seus  ocupantes, consensualmente, todos alertaram para a necessidade de melhorar a  qualidade dos presídios portugueses. 

“Com péssimas prisões, como podemos nós formar bons prisioneiros?” questionaram os espíritos mais humanistas, sensíveis à obrigação moral de  preservar a dignidade dos reclusos e conscientes da responsabilidade que o Estado  assume quando priva um cidadão da sua liberdade, enquanto, no rescaldo de tais  opiniões, a opinião pública se tornava quase uníssona: “é urgente requalificar os  estabelecimentos prisionais!” 

Perante toda esta convergência, e pouco dado a conformidades absolutas, pus-me a pensar sobre o assunto que, por esta altura, ainda me suscita várias  interrogações. Não querendo menosprezar a dignidade de quem está preso,  privado da sua liberdade, atrevo-me a questionar: até que ponto podemos melhorar  a qualidade das prisões? 

É que, bem vistas as coisas, considerando o preço a que está hoje o metro  quadrado nas principais metrópoles do país e admitindo que consigamos melhorar  significativamente as condições das nossas cadeias, é bem possível que a  perspetiva de uma pena de prisão que assegure habitação e alimentação gratuitas  pareça cada vez mais convidativa aos portugueses. E, assim, sem que nos  apercebamos, arriscamo-nos a que, de repente, milhares de portugueses se  dediquem ao crime e protagonizem uma onda de violência sem paralelo na nossa  História… não motivados por qualquer impulso transgressor, mas desesperados  por garantirem um quarto que não lhes leve dois terços do seu salário. 

Aliás, não fosse o fenómeno do malfadado “efeito de estufa” e, porventura, alguma  ignorância sobre a evolução do mercado imobiliário em Portugal, e talvez os  foragidos de Vale de Judeus tivessem valorizado mais as virtudes do seu habitat  prisional. Estivessem eles cientes da enormidade dos preços por aí praticados, e,  talvez, tivessem apreciado mais a sua masmorra, desfrutando do raro privilégio de  poderem estar alheados da inflação dos mercados e imunes à insistência dos  agentes imobiliários – uma classe que, essa sim, deveria ser punida severamente, 

privados de realizar telefonemas insistentes ou vendas coercivas, sem direito a lucrar com a inflação desmesurada que nos faz pagar fortunas pelo privilégio de  vivermos aprisionados em ‘cárceres’ de escassos metros quadrados e pé direito  diminuto.

OPINIÃO I BERNARDO NETO PARRA

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