Opinião
A propósito do último comboio
A notícia chegou de forma relativamente discreta: o último comboio partiria da Estação Nova às 00H20 do dia 12 de janeiro. A opção pela sua divulgação numa sexta-feira, tomada provavelmente para não perturbar a semana de trabalho dos cidadãos com preocupações, não evitou ainda assim, uma onda de indignação. Na Internet, claro.
As redes sociais, em particular, foram tomadas por comentários inflamados e hashtags incendiárias, numa onda de insatisfação, revolta e raiva. Só que esta foi uma onda que juntou muito mais pessoas do que as que participaram nas diversas manifestações contra o encerramento daquela estação que, nos últimos anos, se sucederam, e isso é um problema sério. De Coimbra e não só. Símbolo da ligação de Coimbra ao resto do País, a Estação Nova transformou-se, assim, também num símbolo da transformação do ativismo político e cívico numa espécie de sucedâneo, o ativismo de sofá.
Indiferentes aos argumentos a favor da manutenção em funcionamento daquela infraestrutura que marca a vida da Cidade há bem mais de um século – e são bastantes, desde os transtornos que causará à mobilidade dos cidadãos (na sua maioria, trabalhadores), às previsíveis repercussões económicas e sociais sobre a já de si desafiada Baixa – ou até à enumeração de cidades a que Coimbra gosta de se comparar (como Salamanca) que preservam as suas estações centrais, os agora indignados só chegaram a esse estado tarde demais e sem sequer se darem ao trabalho de sair de casa ou de levantar os olhos do telemóvel.
Nisto, porém, Coimbra é absolutamente global, porque um pouco por todo o mundo as redes sociais fervilham de um ativismo que nunca chega a transformar as palavras em ações… aliás, nem sequer em mais palavras, se isso implicar verbalizá-las a céu aberto. A indignação esgota-se em cliques e partilhas, que substituem uma participação cívica efetiva e criam uma ilusão de envolvimento que enfraquece a democracia.
A participação e o debate obrigatórios para alcançar uma sociedade igualitária são ‘trocados’ por posts e emojis, abrindo espaço para que decisões importantes sejam tomadas sem resistência significativa. Pior ainda, entregam o poder de mediar o debate público aos algoritmos e interesses comerciais das plataformas digitais, cujos proprietários não foram eleitos nem prestam contas à sociedade – e são, como esta semana se tornou ainda mais evidente (com o anúncio de Zuckerberg sobre o fim da verificação de factos no Facebook e a enésima tentativa de interferência de Musk em processos eleitorais), imensamente perigosos.
Enquanto os cidadãos se entretêm em debates que se ficam pelo mundo virtual (seja o assunto de âmbito local, nacional ou mundial) e descuram a ação efetiva, os verdadeiros detentores do poder – magnatas da tecnologia, mas também governantes e outros – avançam as suas agendas sem obstáculos. A transformação do ativismo real em revolta digital é um presente para qualquer aspirante a ditador.
A democracia não se fortalece com ‘likes’. E se eles são insuficientes para impedir o desmantelamento de uma estação ferroviária, como acaba de ficar provado em Coimbra, ainda menos podem contra o desmantelamento silencioso dos pilares da nossa própria liberdade.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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