Opinião

A galinha dos portugueses

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | 2 horas atrás em 19-10-2024

Numa entrevista a uma revista nacional e num daqueles momentos em que o humorista dá lugar ao filósofo de sofá (o que soa pior do que o resultado que, muitas vezes, daí surge), Gregório Duvivier enunciou uma teoria que me fez pensar. Passo a citar: «Eu tenho a impressão que a riqueza é mal vista em Portugal. É um país que tem um ethos socialista, um certo anticapitalismo no ar – nisso, alguns portugueses não concordam comigo, mas, olhando de fora, é assim que eu vejo. É como se o foco das pessoas não fosse ficar rico, e sim viver bem».

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Será mesmo assim? Ou, melhor ainda: será só isso?

Acredito que Duvivier, com o seu olhar do lado de lá do Atlântico, não teria em mente o retrato preconceituoso do português que está mais preocupado com o tamanho da sardinha assada com que acompanha o copo de três do que com o saldo da conta bancária. Acho, até, que das suas frases se subentende uma admiração sincera por essa suposta qualidade nacional de não viver obcecado pelos bens materiais, mas eu – que tenha bastante mais experiência a lidar com portugueses… – não consigo deixar de ser bem mais cínico: o problema do português não é, de facto, com ser rico ou pobre, mas antes com a possibilidade de o vizinho ser mais rico do que ele.

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Afinal, se há algo que unifica a nação lusitana é a preocupação firme e inabalável com o facto de que «A galinha da vizinha é sempre melhor do que a minha»… Este provérbio é, na minha opinião, um pilar da alma nacional. Pode-se ter uma galinha gorda, feliz e a pôr ovos feitos de ouro, mas se a do vizinho calha ser mais produtiva, então algo está errado. É esta necessidade quase ideológica de medir o sucesso próprio pela galinha alheia que define, na verdade, o nosso ethos. O português não sonha com uma mansão no topo da colina, basta-lhe que consiga vislumbrar, da janela da sua barraca, um horizonte livre de ostentações alheias. Outro mantra nacional, o da alegria da pobreza (que nem 50 anos de democracia conseguiram erradicar completamente) provém, aliás, do mesmo lugar, o que explica que, por exemplo, boa parte das reivindicações de classe surjam só depois de outras classes serem bafejadas pela (suposta) generosidade de um qualquer governo, num círculo vicioso que acaba por transformar direitos em birras de adulto.

Para ser justo, este fenómeno de comparar galinheiros nem sequer é uma originalidade portuguesa. Há uma espécie de anedota que Bono, vocalista dos U2, conta recorrentemente, sobre como os norte-americanos olham para a tal mansão no topo da colina e pensam «Um dia, eu vou ser aquele tipo com a mansão no topo da colina», enquanto os irlandeses olham para o mesmo tipo e resmungam: «Um dia, eu vou apanhar aquele sacana!» Troquemos as colinas verdes da Irlanda pelas encostas lisboetas ou as planícies alentejanas e conseguiremos perceber que, na verdade, o espírito irlandês tem muito mais em comum com o português do que Duvivier certamente imagina.

Outra prova de que mais povos existem com questões para resolver com os vizinhos (ou, mais provavelmente, com o amor-próprio) é a existência, na língua inglesa, da expressão «The grass is always greener on the other side» (A relva é sempre mais verde do outro lado), sugerindo que os anglófonos também se preocupam demasiado com o que está para lá da cerca. Aliás, se aprofundarmos a questão, é fácil imaginarmos provérbios semelhantes em diversas outras línguas: experimentem um sotaque francês ao dizer «O queijo do vizinho é sempre mais malcheiroso», ou uma pronúncia alemã com a frase «A salsicha do vizinho é sempre mais longa», e digam-me se não vos parece plausível (e também uma canção de Quim Barreiros, neste último caso).

Talvez a questão essencial seja, afinal de contas, que a teoria de Gregório Duvivier é tão condicionada pela bolha em que vive e se movimenta como qualquer outra teoria que não seja decorrente do método científico. A ideia de um Portugal anticapitalista resultará de os amigos portugueses do humorista brasileiro terem provavelmente esses ideais, da mesma forma que a minha visão de um Portugal invejoso indica – agora que penso bem nisso – que talvez precise de me movimentar em círculos sociais mais saudáveis…

Poderá o grupo de amigos do meu vizinho ser melhor do que o meu?

OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO

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