Vítimas dos incêndios (sobre)vivem entre o desânimo e a esperança
Nas aldeias por onde as chamas passaram em junho, há vontade de andar para a frente, mas também desânimo – muito. Há quem decida ficar mesmo que tudo a empurre para fora e quem não fale em sair por já não ter pernas para isso.
Passados seis meses do incêndio de Pedrógão Grande, ainda é tudo muito recente. Aquilo que se vê na estrada – árvores queimadas ao lado de rebentos, reconstruções ao lado de casas queimadas – é um símbolo do estado de alma dos habitantes. As cabeças já não estão tão cabisbaixas, já se esboçam sorrisos, mas as feridas permanecem vivas.
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As marcas são evidentes em pequenas coisas: cabras que já não sabem o caminho para casa, um gato com medo da lareira, um pintor que ainda não consegue desenhar paisagens verdejantes, os quilos que Rosalina perdeu – a tragédia secou-a. Maria Cravo já não sonha com o incêndio, mas acorda durante a noite a transpirar, e Alzira já vê a sua casa a ser reconstruída, mas não terá o forno onde fazia a sua “famosa” broa de milho.
“Vai-se andando” é a resposta que mais se ouve pelos concelhos de Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande e Castanheira de Pera – os mais afetados pelo incêndio de junho, que matou 66 pessoas e provocou mais de 250 feridos.
Há dois meses, o marido de Maria Adelaide recebeu uma mensagem, por volta das quatro da manhã, do filho de 31 anos, a dizer que tinha ido para França. A outra filha do casal já tinha saído para o norte do país – “até já fala à moda do Porto”.
“Esta terra não consegue prender aqui ninguém. A malta pode trabalhar onde?”, pergunta Maria Adelaide, de 53 anos, enquanto pastoreia as suas três cabras e um bode perto da entrada de Vila Facaia.
A casa, em Vale do Outeiro, ardeu e com ela pequenas memórias, como as fotografias e os livros da escola dos filhos ou coisas simples, como a torradeira ou a tábua do presunto.
“Não ficou nadinha e não morrermos foi um milagre”, sublinha, lamentando também as quarenta galinhas que morreram, o barracão e a horta.
A casa, entretanto, já foi reconstruída, as cabras já têm terra para pastar e na horta já crescem couves e cebolas.
Dá para ser feliz? “Que remédio. Temos que lutar. Mas a gente não esquece. Todos os dias me lembro das imagens”, sublinha.
Ali perto, em Nodeirinho, João Viola, jardineiro da Câmara de Pedrógão Grande, tenta utilizar a pintura como forma de terapia.
“Sinto-me lento e na condução tenho medo”, conta, confessando que perdeu a noção do tempo – os meses, os dias, as horas vão-se baralhando.
Por vezes, ainda pergunta se não está “num pesadelo contínuo”, se tudo aquilo que viu é real. Fazer uma queimada deixa-o em sobressalto – mesmo à chuva -, as paisagens verdejantes teimam em não aparecer nas suas pinturas e ainda não consegue passar por alguns dos terrenos que tinha, com cedros, tílias, pinheiros nórdicos e cerejeiras – o legado que queria deixar.
Ainda lhe custa passar pela estrada 236-1, onde morreram a maioria das pessoas, mas “não há volta maior possível”. De Nodeirinho para qualquer sítio, não dá para evitar passar por um local onde tenham morrido pessoas, realça.
“Morreram duas ali, quatro além, três ali, uma aqui em cima”, explica, apontando para os diferentes caminhos.
Na 236-1, passar “por aqueles 100 metros é como se se passasse dentro de um cemitério. Deixa-nos em sobressalto”, sublinha.
“Traumatizou todo o território”, vinca.
Alzira Costa, da Barraca da Boavista, já perdeu 11 quilos e o seu marido, Álvaro Santos, 13.
Estão em casa de uma prima, à espera do dia que a deles fique reconstruída.
“Não havemos de estar com melhor cara, diga lá?”, pergunta Alzira, de 76 anos, contando voltar para a sua casa em março.
Na nova casa, porém, não haverá lugar para repor “a casita do forno”, onde fazia uma broa de milho que era conhecida na zona. “Já há quem tenha saudades”, nota.
Os sorrisos de Alzira são entrecortados por um discurso resignado e desanimado, enquanto vai enumerando, com a ajuda do marido, todas as coisas que perdeu para as chamas.
Safou-se o Simão, um gato meigo, deitado à porta da casa da sua prima, que ainda hoje tem medo da lareira. “Ficou queimado. Nem comia, nem andava. Tenho-lhe amor como se fosse uma pessoa de família”, explica.
Álvaro aquece a mão esquerda ainda inchada das queimaduras debaixo da manta, que está “sempre fria”.
“A gente nunca mais fica bem. Apesar de ficarmos com a casa feita e irmos para a nossa casa, nunca mais somos o que éramos. Isto abalou muito a gente. Tudo vai demorar muito tempo e começar de novo com esta idade não é fácil”, frisa Alzira.
“Olhe, vamos andar como a gente puder, em frente, um dia de cada vez”, resume.
Rafael Almeida vive em Figueiró dos Vinhos, tem 23 anos e mantém a ideia de viver na vila onde cresceu e onde criou em fevereiro uma produtora audiovisual com uma colega de Espinho.
Da sua turma do secundário, acha que é o único a viver a tempo inteiro em Figueiró.
“Não sei se o incêndio fez com que os jovens quisessem abandonar o território, porque a maior parte já abandonou a ideia de ficar cá muito antes do incêndio”, explica à Lusa o jovem.
No entanto, “o incêndio aproximou mais as pessoas”, nota Rafael, que continua a olhar para o futuro como uma incógnita.
“A verdade é que vejo cada vez mais pessoas a quererem viver cá e a tentarem fazer coisas cá, mas continua a ir mais gente do que a ficar”, explica.
Renato Antunes nasceu e cresceu em Figueiró dos Vinhos, foi para Lisboa onde trabalhava num banco e acabou por regressar em 2014.
O jovem de 33 anos que gere o restaurante da aldeia de xisto de Casal de São Simão diz que não se arrepende da mudança: “Tenho um projeto de futuro aqui e muito mais qualidade de vida”.
Olhando para os amigos da sua geração, estão todos fora daquela zona, mas “muitos mostram vontade em querer voltar e em investir”.
Essa vontade acentuou-se depois do incêndio, mas não há condições para assegurar um regresso.
“Ou tem algum capital ou está lixado. Não há emprego, não há indústria, não há comércio, há mais coisas a fechar do que a abrir”, notou, considerando que depois do incêndio abre-se uma janela de oportunidade para fazer as coisas de forma diferente.
Laura Silva, que vive na localidade do Mosteiro, soube a 18 de julho que seria despedida da Enerpellets, que foi consumida pelas chamas.
Na pequena aldeia, Laura e o marido, que ficou desempregado há um ano com o fecho do matadouro, são o casal mais novo.
“Temos que pensar positivo. Se não pensarmos positivo o que vai ser de nós? As aldeias estão desertas, para emigrar já é tarde e temos a nossa casa aqui. Bem basta os filhos que terão que sair”, realça.
A filha mais velha, de 21 anos, está a estudar na universidade em Coimbra e, apesar de ser “muito prendida à terra”, pode ser difícil o seu futuro passar naquele território.
“Agora o incêndio só vai trazer desemprego. Mas tenho que pensar positivo. Para os mais velhos isto é o fim deles. Ou andam afetados psicologicamente ou andam medicados. Mas é lutar, tentar arranjar emprego ou esperar que a fábrica abra”, diz.
Apesar de fazer por pensar positivo, sublinha que o incêndio “foi para destruir o pouco que ainda havia”.
“Não estou a ver ajudas, não estou a ver incentivos. Acho que é mesmo para isto morrer”.
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