A lei que regula as condições nas quais a morte medicamente assistida não é punível voltou a ‘esbarrar’ no Tribunal Constitucional (TC), apesar de os juízes do Palácio Ratton reiterarem que a maioria do diploma cumpre a lei fundamental.
Esta decisão surgiu em resposta a dois pedidos de fiscalização sucessiva do diploma: o primeiro submetido em novembro de 2023 por um conjunto de deputados do PSD, e o segundo da autoria da Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, em março do ano passado.
O tema já foi alvo de quatro vetos: dois políticos do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e dois por inconstitucionalidades decretadas pelo Tribunal Constitucional.
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Apesar de o parlamento ter confirmado o decreto em maio de 2023, e a lei ter sido promulgada, a regulamentação não foi aprovada, o que inviabilizou a sua aplicação. A Assembleia da República encontra-se dissolvida, pelo que não será possível qualquer tentativa de expurgar estas inconstitucionalidades até à próxima legislatura.
O debate sobre a despenalização da morte medicamente assistida iniciou-se no parlamento em 2016 e desde então teve vários avanços e recuos.
A discussão no parlamento sobre o tema começou com uma petição a favor da despenalização, em 2016. Um outro texto contra a regulação da morte medicamente assistida viria também a ser entregue alguns meses depois.
Entre 2017 e o início de 2018, foram apresentados na Assembleia da República os primeiros projetos de lei pelo PS, Bloco de Esquerda, o Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV).
No dia 29 de maio de 2018, num parlamento ainda com o CDS-PP mas sem o Chega e Iniciativa Liberal, os projetos não passaram, uma vez que nenhum conseguiu os 116 votos necessários.
Depois das legislativas de 2019, que elegeram deputados do Chega, Iniciativa Liberal (IL) e Livre para a Assembleia da República, PS, BE, PAN, “Verdes” e IL apresentaram iniciativas sobre o tema.
No dia 20 de fevereiro de 2020, e com uma manifestação contra no exterior da Assembleia da República, os deputados aprovaram na generalidade pela primeira vez projetos sobre a eutanásia.
Na altura, uma iniciativa popular, da Federação Portuguesa Pela Vida, subscrita por mais de 95 mil pessoas, para a realização de um referendo, foi entregue no parlamento e acabou por obrigar os deputados a interromper o trabalho que estava a decorrer na especialidade.
A proposta de referendo acabou rejeitada e o trabalho em comissão foi retomado. A votação final global do texto de substituição teve lugar já em janeiro de 2021, altura em que foi aprovado por maioria, com os votos a favor de grande parte da bancada do PS, do BE, PAN, PEV, IL e 14 deputados do PSD e votos contra do CDS, Chega e PCP.
Em 18 de fevereiro de 2021, o Presidente da República requereu ao TC a fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma, sustentando que recorria a conceitos “altamente indeterminados” para definir os critérios para a prática legal da eutanásia: “sofrimento intolerável” e “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”.
A lei foi declarada inconstitucional em 15 de março de 2021, numa decisão tomada por maioria, de sete juízes contra cinco. O TC deu razão ao chefe de Estado relativamente à segunda expressão, declarando o respetivo artigo inconstitucional, por “insuficiente densidade normativa”.
No seu pedido, Marcelo Rebelo de Sousa escreveu que não estava em questão “saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme a Constituição”.
No entanto, o TC entendeu tomar posição sobre essa questão de fundo, considerando que a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição não constituía um obstáculo inultrapassável para se despenalizar em determinadas condições a antecipação da morte medicamente assistida.
O Presidente da República vetou o diploma e devolveu-o ao parlamento.
Em julho, os cinco partidos com projetos sobre a eutanásia acordaram, em reunião informal, um “texto base” para ultrapassar a falta de “densidade normativa” apontada pelo TC.
As alterações ao decreto incluíam, entre outros, um novo artigo para definir conceitos, oito no total, desde a morte medicamente assistida à “lesão definitiva”, doença grave ou incurável.
Em 05 de novembro de 2021, o novo decreto foi aprovado no parlamento com uma maioria semelhante à anterior, com 138 votos a favor, 84 contra e cinco abstenções.
A votação decorreu um dia depois de o Presidente da República ter comunicado ao país a dissolução da Assembleia da República e a realização de eleições antecipadas em 30 de janeiro, devido ao chumbo do Orçamento do Estado para 2022.
No dia 29 de novembro de 2021, Marcelo Rebelo de Sousa vetou politicamente a lei, realçando que o novo texto utilizava expressões diferentes na definição do tipo de doenças exigidas para o procedimento: “doença grave”, “doença grave e incurável” e “doença incurável e fatal”.
Caso a Assembleia da República quisesse “mesmo optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida”, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, optaria por uma “visão mais radical ou drástica”, questionando se isso corresponderia “ao sentimento dominante na sociedade portuguesa”.
O parlamento foi dissolvido a 05 de dezembro de 2021 e o dossiê da eutanásia acabou remetido para a legislatura seguinte.
As eleições antecipadas de janeiro de 2022 deram início a uma nova legislatura e o processo foi retomado pelos deputados num parlamento já sem Partido Ecologista “Os Verdes” e CDS-PP.
PS, BE, PAN e IL avançaram de novo com projetos que foram aprovados na generalidade em 09 de junho. No mesmo dia, um projeto de resolução do Chega que pedia a realização de um referendo sobre o tema foi rejeitado pelos deputados, com uma grande maioria do PSD a favor.
O texto final foi ‘fechado’ em meados de outubro no grupo de trabalho sobre a morte medicamente assistida e aprovado em votação final global no dia 09 de dezembro.
O Presidente da República enviou o diploma para o TC para fiscalização preventiva da sua constitucionalidade em 04 de janeiro de 2023.
Em 30 de janeiro de 2023, o TC volta a declarar inconstitucionais algumas normas do terceiro decreto aprovado no parlamento sobre a eutanásia.
Para o TC, o texto aprovado criaria “uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação” da lei, com os juízes a entender que o legislador não clarificou se as três características contidas na definição de “sofrimento de grande intensidade” – “físico, psicológico e espiritual” – exigidas para o ato deviam ser lidas de forma cumulativa ou individual.
Contudo, o TC considerou constitucionais as definições de “doença grave e incurável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema” contidas naquele decreto, conceitos que tinham suscitado dúvidas ao Presidente da República.
O diploma foi vetado e devolvido de novo ao parlamento.
Em nova tentativa, o quarto texto estabelece que a morte medicamente assistida só poderá ocorrer através de eutanásia se o suicídio assistido for impossível por incapacidade física do doente.
Os deputados retiram ainda a referência a “sofrimento físico, psicológico e espiritual”.
Neste texto, “sofrimento de grande intensidade” passa a ser definido como “o sofrimento decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.
O novo texto foi aprovado no parlamento em 31 de março de 2023, em votação final global, com votos a favor da maioria da bancada do PS, da IL, do BE, de seis deputados do PSD e dos deputados únicos de PAN e Livre.
Teve votos contra da maioria da bancada do PSD, Chega, PCP e de cinco deputados do PS. Houve duas abstenções, de um deputado socialista e de um social-democrata.
Em 19 de abril de 2023, o Presidente da República veta o quarto diploma do parlamento, pedindo à Assembleia da República que clarifique “quem define a incapacidade física do doente para autoadministrar os fármacos letais, bem como quem deve assegurar a supervisão médica durante o ato de morte medicamente assistida”.
PS, IL, BE e PAN manifestam a sua intenção de confirmar o diploma.
Em 12 de maio de 2023, a Assembleia da República confirma o decreto com um total de 129 votos a favor, 81 votos contra e uma abstenção, obrigando à sua promulgação.
Votaram a favor a esmagadora maioria dos deputados das bancadas do PS, IL, BE, e os representantes do PAN e Livre, bem como oito parlamentares do PSD.
O diploma é promulgado em 16 de maio.
Em 02 de novembro de 2023, um grupo de 56 deputados do PSD entrega um pedido de fiscalização sucessiva da lei que despenaliza a eutanásia.
O objeto principal do pedido diz respeito à inconstitucionalidade da própria regulação legal da eutanásia, “com base no princípio da inviolabilidade da vida humana e na inexistência de um direito fundamental à morte autodeterminada”.
A lei estabelecia que a regulamentação deveria ser aprovada pelo Governo no prazo de 90 dias após a publicação em Diário da República para que a despenalização da morte medicamente assistida entrasse em vigor 30 dias depois, algo que não chegou a acontecer.
Em 07 de novembro de 2023, o primeiro-ministro, António Costa, apresenta a sua demissão do cargo e é desencadeada uma crise política que leva à convocação pelo Presidente da República de eleições legislativas antecipadas para 10 de março de 2024.
Neste cenário, o governo PS decidiu incluir a questão no dossiê de transição para o executivo seguinte, que viria a ser liderado por Luís Montenegro, do PSD, e integrado pelo CDS-PP.
A 12 de março de 2024, a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, também requereu ao TC a declaração de inconstitucionalidade da lei por considerar que viola a Constituição no n.º 1 do seu artigo 24.º [A vida humana é inviolável] e no n.º 1 do seu artigo 26.º [A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação].
Em setembro de 2024 é publicada uma carta aberta subscrita por mais de 250 personalidades a exigir a regulamentação da lei da eutanásia. O Governo liderado por Luís Montenegro disse estar à espera das conclusões do TC sobre os pedidos de fiscalização sucessiva antes de tomar qualquer ação sobre a lei, recordando que o anterior executivo não a regulamentou.
Em 22 de abril de 2025, o TC volta a declarar inconstitucionais algumas das normas da lei, apesar de sublinhar que a maioria do diploma cumpre a lei fundamental.
No acórdão divulgado, os juízes do Palácio Ratton reiteram que a Constituição “não impõe nem proíbe categoricamente” a legalização da morte medicamente assistida, confiando ao legislador “uma margem de ponderação entre os valores da liberdade individual e da vida humana”.
Contudo, seis normas foram declaradas inconstitucionais, agregadas pelos juízes em três questões. Em primeiro lugar, o Tribunal considerou que “vários segmentos da lei pressupõem que o doente tem o direito a escolher entre os dois métodos de morte medicamente assistida – suicídio ou eutanásia -, quando, na sua atual versão, a lei só consente a eutanásia se o doente estiver fisicamente impossibilitado de autoadministrar os fármacos letais”.
“No entender do Tribunal, estes lapsos do legislador, numa matéria extremamente sensível, podem criar dificuldades desnecessárias ao intérprete e geram um risco evitável de má aplicação do direito, ofendendo o princípio constitucional da segurança jurídica”, defendem.
O TC considerou ainda inconstitucional a norma que regula o modo de intervenção do médico especialista na patologia que afeta o doente, ao não exigir que este seja examinado por este profissional.
Por último, o TC declarou inconstitucional a norma que impõe ao profissional de saúde que recusa praticar ou ajudar o ato de morte medicamente assistida o ónus de especificar a natureza das razões que o motivam, por entender que a mesma constitui “uma restrição desadequada, desnecessária e desproporcional da liberdade de consciência”.
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