Opinião
A falácia da meritocracia
Em Portugal, a meritocracia é como os unicórnios: toda a gente sabe do que estamos a falar, muitos elogiam a sua beleza, mas ninguém pode dizer que viu algum deles na realidade. Não por falta de esforço dos maiores magnatas da economia nacional em defender a sua existência. Pelo contrário, são recorrentes os discursos que lhes escutamos sobre o poder transformador do mérito, embora seja fácil imaginar que os fazem enquanto afagam as cabeças dos filhos e filhas que, curiosamente, herdarão os respetivos impérios graças exclusivamente a muito trabalho e dedicação.
As dinastias empresariais portuguesas nunca se esquecem de passar o testemunho à descendência, seja o seu apelido Azevedo, Amorim ou Espírito Santo.
Com mais ou menos crises financeiras, mais ou menos escândalos criminais, aquilo de que podemos estar seguros é que a perpetuação dos legados familiares nunca falha.
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É, evidentemente, uma prerrogativa legítima, não fosse a narrativa oficial que as classes dominantes gostam de propagar, que faz dos filhos dos detentores de fortunas prodígios que não se pouparam a esforços para estar no lugar certo, na hora certa (quando a única coisa verdadeiramente relevante é terem o sobrenome certo), enquanto os filhos dos menos afortunados são os culpados da sua própria desgraça, provavelmente por não terem o mindset correto.
Acontece que esta retórica meritocrática – que nem sequer se restringe ao círculo familiar, abrangendo outros tipos de privilégio – é a mesma que serve para justificar salários mínimos enquanto os lucros das grandes empresas batem recordes, bem como a razão por que a ideia da educação como elevador social se torna cada vez mais uma miragem. Afinal, quando o ponto de partida de alguns inclui colégios de elite e estágios no estrangeiro, enquanto outros começam a maratona já cansados de correr pelo simples direito a estudar, onde fica a meritocracia?
O acesso a oportunidades é o grande privilégio dos nossos dias, como provavelmente sempre foi. Que vivamos num mundo que parece ter-se deixado adormecer e passemos os dias a sonhar acordados com a meritocracia, nada mais é do que uma azeda ironia. O som aparentemente harmonioso que se faz ouvir mais não é do que o canto da sereia de quem está no topo, justificando por que razão os que estão no fundo dificilmente de lá conseguirão sair.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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