Opinião

Bairros problemáticos

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | 19 minutos atrás em 26-10-2024

Já era evidente para aqueles que não escolhem tapar os olhos para poder ignorar (ou negar) a verdade, mas os acontecimentos mais recentes, de resto largamente noticiados, vieram escancarar a realidade: há zonas do país onde o banditismo domina, onde viver à margem da lei é tido como exemplo a seguir e onde o sucesso se mede pelo número de delitos cometidos sem condenação.

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Zonas onde a polícia evita entrar há décadas, onde há criminosos que se comportam como se fossem donos do país, dando provas inequívocas de um sentimento de impunidade inaceitável, onde famílias inteiras atuam como gangues mafiosos, protegendo os seus e aniquilando os rivais. Tudo isto sem que os políticos façam algo para mudar a situação ou a comunicação social tenha coragem para denunciar o que todos os portugueses, na verdade, já sabem.

O caro leitor já deve ter percebido de que fenómeno estou a falar e quais os acontecimentos a que fiz menção, mas seria cobarde da minha parte não os nomear: estou a referir-me, obviamente, ao início do julgamento do caso BES e a tudo o que ele tem permitido perceber sobre esse bairro absolutamente problemático que é a Quinta da Marinha.

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Naquele oásis de luxo e privilégio, impera um tipo de crime sofisticado, que alguns olham até com alguma admiração, elogiando as práticas ilegais e a desenvoltura em fugir à justiça.

Um tipo de crime onde o perigo é invisível, protegido pelo estatuto social e pelo poder económico. Um tipo de crime em que as mãos não se sujam de sangue, mas nem por isso estão mais limpas.

Na Quinta da Marinha (nas várias Quintas da Marinha), lado a lado com detentores de grandes fortunas construídas com o beneplácito dos olhos que se foram fechando às ilegalidades cometidas, reside também uma amarga ironia: a mesma sociedade que é rápida a apontar o dedo aos bairros empobrecidos e a etiquetá-los como fábricas de delinquentes, rapidamente muda o seu discurso quando os holofotes incidem sobre quem se passeia pelos corredores do poder com gravatas italianas, joias exclusivas e uma postura de dono disto tudo.

Nesses casos, não se fala em quadrilhas, mas em associações empresariais, não se trata de roubo, mas de gestão criativa, não se identificam delinquentes, mas visionários empreendedores.

O mais grave é que este duplo padrão perpetua um ciclo nefasto, em que se tolera – e até celebra – a criminalidade de uns, enquanto se procura criminalizar aa falhas de outros. Às vezes, até criminalizar simplesmente a sua nacionalidade ou ascendência.

Dessa forma, consolida-se a ideia de que o crime é um luxo a que só uns poucos têm direito, ou, para os que estão fora desses círculos, uma porta de entrada para um mundo de regalias infinitas.

Enquanto a sociedade portuguesa não olhar para a criminalidade dos ricos com a mesma irredutibilidade e sobranceria moral com que encara a dos pobres, a vida dos moradores da Quinta da Marinha continuará imperturbável, sorrindo nas páginas das revistas de luxo, ao mesmo tempo que tudo arde à sua volta.

Diz-se muitas vezes das comunidades economicamente desfavorecidas das periferias que vivem à margem, mas quem aí verdadeiramente habita são os Ricardos Salgados desta vida: nas tais margens que Brecht dizia que violentamente comprimem as águas do rio.

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO

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