Justiça

Vítimas de abusos dizem que “cansaço” leva algumas a desistir de indemnização da Igreja

Notícias de Coimbra com Lusa | 3 meses atrás em 19-09-2024

Algumas vítimas de abuso sexual no contexto da Igreja Católica em Portugal “estão a desistir” de pedir indemnização, considerando que estão a querer derrotá-los “pelo cansaço”, disse hoje à Lusa um responsável da Associação Coração Silenciado.

António Grosso, da associação que reúne vítimas de abuso sexual na Igreja, adiantou ter conhecimento de “algumas pessoas que já não estão para ir à comissão de avaliação, que vão desistir”, por considerarem que “isto já é muita chatice, nunca mais se resolve”.

“Aliás, quando saiu o regulamento [da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal para a atribuição de compensações financeiras às vítimas], alguns contactos nossos diziam que era tão complicado, que era para desistirmos”, acrescentou António Grosso.

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Em causa, desde logo, o facto de as vítimas que já haviam relatado o seu caso à Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica Portuguesa, presidida pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, serem obrigados a contar de novo o que passaram no âmbito do processo desenvolvido pelo Grupo VITA, criado pela CEP em 2023.

Por outro lado, as vítimas também estão contra a não atribuição de uma indemnização igualitária, mas sim caso a caso.

“Tudo podia ser reduzido a uma solução singela e simples de uma compensação financeira igualitária. Porque se é o próprio presidente da CEP que diz que o sofrimento não tem preço, como é que é possível estabelecer uma tabela de preços?”, questionou o responsável da Associação Coração Silenciado.

António Grosso disse, ainda, ser “muito lamentável e uma grande tristeza que as coisas tenham de passar pela polémica” que, nesta semana, se instalou entre a coordenadora do Grupo VITA e os membros da CI.

Tudo começou com um artigo de opinião de Rute Agulhas, no jornal Expresso, na terça-feira, no qual colocava em questão a validação de 512 casos pela Comissão liderada por Strecht.

“De acordo com o relatório [da CI] apresentado por esse grupo de trabalho, foram preenchidos 563 inquéritos ‘online’. Destes, foram eliminados 51 (…), foram validados 512. Mas o que significa ‘validados’? Esta é a verdadeira questão que, até ao momento, parece por todos ser ignorada. Porque, segundo o que é reportado no já referido relatório, realizaram-se apenas 34 entrevistas com vítimas. Ora, e em relação a todas as demais… o que foi efetivamente validado? Em rigor, nada, pois estamos a falar de inquéritos anónimos preenchidos por pessoas com quem nunca se esteve. Sabemos que noutros países várias pessoas já reconheceram ter preenchido os inquéritos anónimos como forma de testar o sistema, o que corresponde a falsas alegações. E sabemos que o mesmo aconteceu no nosso país”, escreveu Rute Agulhas.

No mesmo texto, a psicóloga lamentava que “os dados relativos a todas as pessoas que contactaram a CI” tenham sido destruídos, o que quer “dizer que não se encontram documentados em lado nenhum. Logo, não existem”.

Na resposta, a CI, também no Expresso, assegurou que “todos os testemunhos recolhidos pelas diferentes formas descritas no relatório final do seu Estudo foram concretizados no âmbito da garantia prévia de um total anonimato das vítimas. A esta garantia, juntava-se a de que esta informação por elas fornecida seria apenas utilizada no âmbito deste Estudo. Seguindo os protocolos da União Europeia de investigação científica, a base de dados era da responsabilidade exclusiva da CI, pelo que em caso algum poderia ser cedida a uma entidade externa”.

“A ‘destruição’ da base de dados, em março de 2024 (de que a CEP teve previamente conhecimento), seguiu protocolos de pesquisa utilizados em temas considerados particularmente sensíveis, como é o caso de abusos sexuais, vítimas e agressores”, acrescentou o grupo liderado por Pedro Strecht.

Hoje, em nota emitida, o Grupo VITA refere que “no que respeita à validação das situações que a CI afirma ter feito, e de acordo com a boa prática”, considera que “tal não é passível de ser feito com rigor apenas com base em relatos escritos anónimos. A validação de um relato (ou, dito de outra forma, a avaliação da sua credibilidade) exige uma avaliação aprofundada, apenas possível com uma ou mais entrevistas presenciais, tal como definido em protocolos de avaliação forense nacionais e internacionais”.

Ao jornal ‘online’ 7Margens, o presidente da CEP, José Ornelas, disse que os dados “não foram destruídos, foram depurados de tudo o que permitisse ter acesso a informação sensível sobre” as vítimas.

“Não vale a pena fazer polémica sobre isto. A pessoa, sob anonimato, contou a sua história. Só se a pessoa for ter com o Grupo VITA e disser que já passou informação à CI é que se põe o problema” do eventual acesso aos dados, no sentido de evitar que cada vítima esteja de novo a contar a sua história. “E isso é um número reduzido”, acrescentou.

Perante tudo isto, António Grosso admitiu que “a resolução do problema está a ser cada vez mais adiada, cada vez mais complicada, mais problemática, quando deveria ser uma coisa simples, singela, rápida, e que poderia estar resolvida há um ano. Mas andamos a tentar complicar tudo, o que resultou num regulamento absolutamente absurdo de revitimização das vítimas”.

Crítico de Rute Agulhas, “que não acredita na expressão de testemunhos validados pela CI”, o responsável da Coração Silenciado sublinhou que aquela comissão “era constituída por profissionais reconhecidos e teve um trabalho de um ano, um trabalho longo de grande investigação”.

Quanto à Igreja, não esconde a desilusão, perante o que pensa ter presidido ao ímpeto inicial: “Perante o relatório, pensaram que iriam pedir perdão e acabava aí a telenovela, que não iria haver uma saga tão grande assim à volta do tema”.

Até ao fim de setembro, a Associação Coração Silenciado prevê tomar posição pública sobre o processo indemnizatório e as polémicas.

A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) aprovou em abril a criação de um fundo, “com contributo solidário de todas as dioceses”, para compensar financeiramente as vítimas de abuso sexual no seio da Igreja Católica em Portugal.

“Para dar seguimento a este processo, a Assembleia definiu que os pedidos de compensação financeira deverão ser apresentados ao Grupo VITA ou às Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis entre junho e dezembro de 2024”, anunciou a CEP no final da sua Assembleia Plenária realizada em Fátima entre 08 e 11 de abril.

Segundo o episcopado, “posteriormente, uma comissão de avaliação determinará os montantes das compensações a atribuir”.

O Grupo VITA foi criado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) em 2023, na sequência do trabalho da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica – que ao longo de quase um ano validou 512 testemunhos de casos ocorridos entre 1950 e 2022, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de 4.815 vítimas.

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