Crimes

Doença sem remédio 

OPINIÃO | Bernardo Neto Parra | 3 meses atrás em 02-09-2024

A notícia não é fresca, mas está longe de estar imprópria para consumo: então  não é que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cansada do  marasmo de agosto, resolveu dar um raspanete ao José Rodrigues dos Santos!? 

O raspanete – ou deliberação, como lhe chama a ERC – refere-se a uma entrevista  à deputada europeia (à época, candidata) Marta Temido, transmitida no passado  dia 5 de junho, durante a qual, alegadamente, o jornalista da RTP terá sido  demasiadamente acintoso nas perguntas dirigidas à dirigente socialista. 

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Dois meses bastaram para que a ERC visse e revisse a dita entrevista, com  aproximadamente 10 minutos de duração, e tornasse pública a deliberação  ERC/2024/388 relativamente a “Participações contra a RTP1 a propósito da  

exibição de uma entrevista a Marta Temido, cabeça de lista pelo PS às eleições  europeias”. Concluíram, então, os reguladores que o jornalista do canal público  fora mauzinho com a ex-ministra da Saúde, tendo-se atrevido a fazer-lhe questões  potencialmente desconfortáveis que, notoriamente, não caíram no goto da  entrevistada. E não foi apenas Marta Temido a não apreciar o estilo do pivô… 

Segundo a comunicação social, foram apresentadas três queixas contra a RTP,  relativas à dita entrevista, que, de acordo com a ERC, “pela forma como foi  conduzida, afastou-se do registo de factualidade” e “é suscetível de prejudicar o  direito dos telespetadores de serem informados”. Para aquela Entidade, o  jornalista “subverteu os princípios” que deveriam nortear a sua missão, e, no meio  do raspanete – perdão, da deliberação – a ERC aproveitou, ainda, para “salientar a  relevância e a responsabilidade dos meios de comunicação social nos períodos  eleitorais como ferramentas essenciais para informar e esclarecer as escolhas  dos cidadãos” e “verificar que, na entrevista analisada, não foi conferido espaço à  entrevistada para expor os seus pontos de vista”. 

Sendo eu sensível sempre que está em causa a liberdade dos media, resolvi  desconfiar da memória e rever atentamente a infame entrevista. Pude, então,  comprovar que esta se centrara em temas bastante maçadores, como os Fundos  de Coesão, a subsidiodependência, e o aproveitamento deficitário dos apoios  comunitários. José, o jornalista, esteve particularmente provocador; Marta, a  candidata, esteve visivelmente nervosa; e os dez minutos de conversa entre  ambos geraram uma minientrevista mais animada do que de costume, com direito  a ironias tensas e caneladas marotas.

No final, já cansada da difícil gestão das suas cábulas, em resposta ao  agradecimento do entrevistador – “Marta Temido, muito obrigado por ter vindo” – a  agora eurodeputada retorquiu com um insólito: “Eu não posso dizer o mesmo,  mas muito obrigada”. Curiosamente, este episódio não mereceu um único reparo  da ERC, a quem se exigiria que protegesse os telespetadores de respostas ilógicas  ou absurdas proferidas por candidatos políticos, de quem se devia exigir, pelo  menos, coerência sintática. 

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Quem não gostou da descompostura – pois, claro – foi José Rodrigues dos Santos,  que contestou a decisão da ERC, alegando um “atentado à liberdade dos  jornalistas em democracia” e ripostando que a entrevistada, Marta Temido, tinha  negado “informação factualmente verdadeira” e prestado “declarações  factualmente falsas”. 

Não sendo um particular admirador das qualidades literárias de Rodrigues dos  Santos, e tão pouco sendo um entusiasta do seu estilo jornalístico, sinto-me  obrigado a defender o pivô… e a liberdade de imprensa, já agora. 

Vale o que vale, eu sei… suspeito até que a ERC não se ralará, nada, com o meu  juízo. Ainda assim, não me dispenso de partilhar as minhas desconfianças sobre  esta deliberação em tom de reprimenda que, ou muito me engano ou, não irá  integrar os anais do mau jornalismo (e já tanto por aí…), mas antes fará parte do  extenso registo de palermices (vamos chamar-lhes “palermices”, para facilitar) da  polémica Reguladora. 

Partilhada a suspeita, e assimilado este diagnóstico pouco animador para a  liberdade de imprensa, a boa notícia é que o jornalista visado pela ERC trabalha  no canal público, o que nos leva a acreditar que a independência da RTP está de  boa saúde, ao contrário da ERC, cuja doença parece não ter remédio.

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