Opinião
A voz rouca
Naquela tarde de março de 2010, entre o café com torrões de açúcar e a sanidade, eu tinha poucas alternativas, fazer aquilo que me dava paixão ou ser prática. Sabemos que não é fácil ser feliz com pouco, e a paixão pode alimentar a alma, mas, não o estômago.
Há catorze anos eu iniciava um trabalho do qual gosto muito – escrever. Tornei-me uma jornalista com aquelas aspirações que indicam que está a fazer a coisa certa, trabalhar com prazer. Ouvir e contar histórias, manter os olhos ávidos e o espírito curioso pela notícia. Fora da faculdade o jornalismo é quase sem emoção, esse é o primeiro desencanto da profissão.
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Quando escrevo, as minhas defesas são a favor da isenção, um sentimento nobre que traz prosperidade. É preciso dizer por escrito, com as pálpebras cristalizadas numa esperança única de esvaziar o tema e de ser lida. Escrever histórias é vive-las muitas vezes e essa sensação de viver mais de uma vez nesse tempo, é indescritível.
Posso parecer “blasé” porque sustento umas unhas envernizadas e o cabelo colorido, a vaidade q.b. para uma mulher com ambição. E, para a mulher enganar o próprio destino, é preciso gritar e desafiar a lógica social, a voz rouca indica uma longa jornada, mas nunca pensei em ter piedade de mim por ser subjugada.
As coisas realizadas promovem uma certa nitidez do tempo. A vida não é uma metáfora, e a aptidão é um pequeno poder que pode desviar-te da retidão. O meu instinto primitivo de sobrevivência na profissão é colocado à prova diariamente, por conta de alguns valores pouco ortodoxos que consideram apenas a audiência. O trabalho da escrita exige ousadia e perseverança, mesmo com essa instantaneidade e o sensacionalismo sem precedência.
Hoje imagino que o meu entusiasmo há catorze anos era de perceber que o autocarro passava pontualmente e que minutos antes, estava a observar um senhor a comprar flores-do-campo e uma senhora a dar moedas a um mendigo, uma vida sem pudor é mesmo grandiosa, eu sabia disso e tinha coragem de ser assim.
Atualmente, a internet adianta a pauta do jornal televisivo e das manchetes do dia seguinte dos principais jornais do país. O café é o único que mantém o olhar atento à volta, e visivelmente a realidade altera o meu sonho, tecido de paixão. Tudo deu certo na piscina dos privilégios. Brecht seria uma excelente companhia neste século confuso, a ouvir-me com a voz rouca a dizer que é preciso resistir.
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