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Ricardo Salgado: “O leopardo quando morre deixa a sua pele. E um homem quando morre deixa a sua reputação”
Nascido numa dinastia financeira e criado para ser banqueiro, Ricardo Salgado era o ‘príncipe’ do império Espírito Santo até à queda em 2014. Empenhou-se inicialmente na sua defesa pública mas é hoje um homem só e debilitado.
Ao longo dos mais de 20 anos à frente do Banco Espírito Santo (GES) e do Grupo Espírito Santo (GES), o banqueiro cria reverência em seu redor e um poder tentacular. A aura do trabalhador infatigável, que todos os dias chega cedo e sai tarde do gabinete na Avenida da Liberdade (enfeitado com pintura flamenga do século XVII), somada à elegância, sobriedade, voz pausada e palavras medidas, ajudam ao carisma e valem quase um culto.
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Os primeiros anos do século são de elogios ao grupo de raiz familiar e sobretudo a Salgado (apesar de começarem a surgir casos em que o seu nome aparece envolvido, como Portucale, Mensalão, Submarinos), denotando a sua importância nos meios económico, político e mediático, onde lhe seria cunhado o cognome ‘Dono Disto Tudo’.
“Notava-se que era como que tratado ou visto como um príncipe no setor”, disse o ex-ministro das Finanças de Governos PS (de José Sócrates), Teixeira dos Santos, num reportagem da SIC de 2023 (‘A agenda’). Uma ideia partilhada pelo economista João Duque: “Era um príncipe de salão, ele não andava, deslizava… Podíamos encontrá-lo às sete ou oito da noite e parecia que tinha acabado de tomar duche, barbear-se e vestido de lavado”, relatou.
Bisneto de José Maria do Espírito Santo e Silva, que em 1869 criou a casa de câmbio em Lisboa que daria origem ao BES, Salgado nasce em 25 de junho de 1944 numa família influente na ditadura, na alta finança internacional e na realeza europeia (em 1940, o avô, Ricardo Espírito Santo, hospedou durante um mês o Duque de Windsor após este ter abdicado do trono britânico).
Criado em Lisboa, estuda no ISEG e quando termina o curso começa a trabalhar no banco da família (Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa).
As nacionalizações de 1975, com a tomada do banco por trabalhadores e a prisão de administradores, levam-no a fugir. Viaja para Londres e depois radica-se primeiro no Brasil e depois na Suíça.
É fora de Portugal que a família, usando o prestígio que mantém, reorganiza o grupo com o objetivo de voltar e controlar o banco. Na década de 1980, o primeiro-ministro Mário Soares empenha-se no regresso do grupo, considerando-o estruturante na modernização da economia portuguesa.
O ano de 1991 é marcante. Já regressado a Portugal (com a mulher e os três filhos – Catarina, Ricardo, José), Salgado é escolhido pelos cinco ramos da família para liderar a área financeira aos 47 anos. Em 1992, com a reprivatização do BES, torna-se presidente executivo.
O banco, o grupo, a família crescem em negócio e influência. Controlam bancos em vários países (Portugal, Espanha, França, Estados Unidos, Angola, Panamá, Dubai, Brasil, Ilhas Caimão), seguradoras, têm investimentos na hotelaria, turismo e na saúde, fazendas no Brasil e Paraguai e negócios de diamante e construção em Angola. Mantêm ligações privilegiadas aos regimes de Angola, Venezuela e Líbia. Em Portugal, entram em setores estratégicos como telecomunicações e energia (o BES é acionista de referência da Portugal Telecom, que defende da OPA da Sonae, e da EDP), obras públicas e parcerias público-privadas.
Salgado dá-se muito bem com os poderes públicos. Ao jornal i, em 2009, disse que “os banqueiros não têm filiação política”.
Manuel Pinho (ministro da Economia do PS) e Miguel Frasquilho (do PSD) eram quadros do BES. Durão Barroso foi consultor do banco depois de ser ministro dos Negócios Estrangeiros (Governo PSD). Também dirigentes do CDS-PP eram próximos do BES.
Apesar da relação amistosa com todos os Governos, o livro “O último banqueiro”, de Maria João Babo e Maria João Gago, diz que “com nenhum outro primeiro-ministro teve uma relação tão próxima como com José Sócrates”.
No livro ‘O Governador’, de Luís Rosa, Carlos Costa (governador do Banco de Portugal na resolução do BES, em 2014) considera que Salgado “precisava do poder político para reforçar o seu poder económico-financeiro e sabia que o poder político carecia do seu poder financeiro para mostrar realizações, ‘obra feita'”, sendo o resultado “o aumento da sua influência e reforço do próprio poder”.
Nos anos áureos como presidente do BES, vive em Cascais (onde ainda reside) e faz a vida empresarial e pessoal em Portugal mas também no Reino Unido, nos Estados Unidos, na Suíça, no Brasil. Adepto do Sporting, gosta de vela, de esqui. Salgado e a mulher, Maria João, vão em 2004 ao casamento de Felipe e Letizia, atuais reis de Espanha.
No círculo de amigos inclui-se Marcelo Rebelo de Sousa (atual Presidente da República). Com Francisco Balsemão, dono da Impresa, a relação esfria por causa de notícias no Expresso sobre o banco.
São conhecidas as férias de final de ano no Brasil e no verão na casa da Praia do Pego, na zona da Herdade da Comporta, que a família detinha e que era destino estival do clã. Em 2013, criou indignação a frase que Cristina Espírito Santo disse na reportagem do Expresso ‘Comporta, o refúgio hippie-chique’: “Vive-se ali em estado mais puro. É como brincar aos pobrezinhos”.
O poder de Salgado foi evidente quando, em 2011, Portugal pediu o resgate à ‘troika’ – liderou o grupo de banqueiros que avisou o Governo de Sócrates que a banca não aguentava mais financiar dívida pública -, e quando, em 2012, o BES escapa à intervenção do Estado (ao contrário do BCP e BPI).
Nos anos seguintes passam a ter mais repercussão pública casos em que estaria envolvido – Monte Branco, operação Furacão, problemas em Angola -, ao mesmo tempo que as dificuldades da economia agravam os problemas financeiros do grupo, e o clã familiar ‘esperneia’ pela falta de bónus e dividendos (muitos pagos à margem da contabilidade oficial) e as autoridades se tornam mais atentas.
Serão 2013 e 2014 a marcar a erosão da aura de Salgado e, por fim, a ruína do império.
Em 2013, foi ouvido no caso Monte Branco e foi polémico o dinheiro que recebeu do construtor José Guilherme (mais tarde, soube-se que foram 14 milhões de euros) e de que se terá “esquecido” de declarar ao fisco. O Banco de Portugal (BdP) esteve perto de lhe retirar a idoneidade mas recuou por falta de segurança jurídica.
Ainda nesse ano, o BdP aperta o cerco e começa a perceber os problemas no GES (dívida ocultada e ativos sobreavaliados e ainda financiamento de empresas do grupo por clientes do banco), o ex-aliado Pedro Queiroz Pereira entrega ao BdP um dossiê a denunciar irregularidades e Salgado entra em rota de colisão com Álvaro Sobrinho (ex-presidente do BES Angola). Nos meses finais de 2013, vêm a público as lutas fratricidas entre Salgado e o primo José Maria Ricciardi.
Em 2014, Salgado tenta manter-se a si e ao BES à tona – ajudado pela tese de que o banco não é afetado pela parte não financeira do grupo-, mas o adensar dos problemas faz com que seja forçado pelo BdP a sair da presidência executiva em junho, a poucos dias de fazer 70 anos.
O livro ‘As conversas secretas do clã Espírito Santo’, de Sílvia Caneco, revela as gravações das últimas reuniões no Conselho Superior do GES e é possível ver o clã desavindo, a discutir por dinheiro (“a gente fica aqui a matar-se e chega ao fim do mês e não consegue pagar as contas nem fazer nada”, diz o primo do Brasil, Ricardo Abecassis, numa reunião), pelas comissões dos submarinos, a desconfiar uns dos outros e várias vezes em desespero.
Em 28 de julho de 2014 Salgado antevê o que outros não queriam perceber: “O grupo a-ca-bou. E eu não tenho forma de o recuperar, não tenho”.
Com a catastrófica situação financeira do banco e a total erosão de confiança, em 03 de agosto de 2014, o Banco de Portugal aplica uma medida de resolução ao BES. O BES e o grupo faliam na praça pública, a história centenária terminava naquele dia.
Logo naquele mês, ao Diário Económico, Salgado diz que não se sente responsável pela derrocada e que vai lutar pelo seu nome. “Não chores pelos que te abandonaram e luta pelos que estão contigo”, é uma das frases do Papa Francisco que cita.
“O leopardo quando morre deixa a sua pele. E um homem quando morre deixa a sua reputação”, afirma já em dezembro, na comissão parlamentar de inquérito.
Em 2015, na contestação a um processo de contraordenação do BdP, diz que o regulador e supervisor bancário agiu “como uma espécie de COPCON dos tempos modernos” e que o que se passou não escandalizou quem deve defender a democracia e o Estado de Direito porque “estavam em causa os tais ricos e poderosos. Tal como no PREC de 1975…”
Apesar das zangas na família (deixou de cumprimentar o tio Ricciardi na missa) e de amigos que se afastam, nos anos seguintes, mantém-se ativo, faz vida social e antecipa a defesa judicial e pública, preparando um livro.
Em 2017, ao Dinheiro Vivo, afirma que o “Banco de Portugal provocou o colapso e os lesados do BES”, ataca o Governo de Passos Coelho (PSD/CDS-PP) e recusa ideia de que controlava tudo, admitindo erros mas não fraude.
Nos anos recentes é um homem mais só, arguido em centenas de processos, com bens e contas arrestados e com os advogados a defenderem que a doença de Alzheimer não lhe permite defender-se ou cumprir prisão.
Em fevereiro último, compareceu em tribunal (caso EDP) com ar debilitado, passada lenta, de mão dada com a mulher. Em janeiro, ao juiz, Maria João tinha contado que o marido é dependente, perde-se em casa e por vezes não se lembra do nome dos netos. “Tinha um marido fantástico e hoje em dia tenho um bebé grande para tratar”, disse.
Salgado cumpriu 80 anos em junho, tendo festejado na Suíça, na casa da filha e do genro (o multimilionário Philippe Amon, dono da empresa de tintas com que se imprimem as principais notas do mundo), segundo o Correio da Manhã. É ainda Catarina quem, contou o jornal, dá 40 mil euros por mês à mãe para despesas.
Dez anos depois da queda do BES, o principal processo-crime contra Salgado (o julgamento do caso BES/GES), em que é acusado de 65 crimes, deverá arrancar em 15 de outubro.
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